Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A usurpação do mito Ingrid

Há cerca de 2.500 anos, Dário I, rei da Pérsia, mandou gravar numa rocha no Monte Behistun, no atual Irã, a história da sua ascensão ao poder. Foi o primeiro exemplo conhecido de propaganda política. Há cerca de uma semana, a mídia nacional transmitiu compulsivamente o resgate da franco-colombiana Ingrid Betancourt.

Poderá ter sido o exemplo mais recente.

Quando foi capturada, Ingrid Betancourt era praticamente desconhecida na cena internacional (incluindo a França) e um peão pouco significante na arena política colombiana. Ainda que candidata presidencial, Ingrid não tinha mais do que 2% das intenções de voto até se tornar refém das Farc. Contudo, em seis anos, Ingrid tornou-se um ícone internacional da luta contra o grupo rebelde colombiano e o maior trunfo político de todos os intervenientes no conflito. Tal como a Inscrição de Behistun – em persa antigo, elamita e babilônico – também a história de Ingrid é escrita por vários atores multilaterais interessados na criação do mito.

Uma visão consistente aponta para o papel da França. O seqüestro de Ingrid ocorreu em plena campanha presidencial francesa de 2002, mobilizando a classe política do país pelo caso. Ainda que ela só tenha obtido a cidadania francesa depois de se casar com o diplomata francês Fabrice Delloye, em 1983, o ex-presidente Jacques Chirac transformou sua prisão em causa nacional e escolheu o seu ministro das Relações Exteriores, Dominique de Villepin, para liderar as iniciativas francesas para a resgatar.

A segunda reeleição

A escolha não foi fortuita. Enquanto estudante no Institut d´Études Politiques de Paris (Sciences Po), Ingrid teve um caso amoroso com o então professor Villepin. É esta uma das principais teses do livro Ingrid Betancourt, Histoire de Coeur ou Raison d´Etat?, de Jacques Thomet, ex-correspondente da AFP na Colômbia, publicado em 2006. Em 2003, Villepin planejou uma operação fracassada de resgate a partir da Amazônia brasileira. A missão coincidiu com uma visita à Colômbia do então ministro do Interior francês, e rival de Villepin, Nicolas Sarkozy. Há quem defenda a idéia de que Sarkozy teria dificultado a operação na Amazônia com o objetivo de ser ele a liderar o resgate da refém.

Há mais pontos de ligação. Em 2007, Jacques Chirac nomeou o então diretor do Departamento das Américas no Ministério das Relações Exteriores francês, Daniel Parfait, como seu ‘interlocutor pessoal nas negociações com as Farc’. Parfait é casado com Astrid Betancourt, irmã mais velha de Ingrid. Depois do resgate de Ingrid feito pelo exército colombiano, Sarkozy foi expedito a recolher os dividendos da libertação. Consciente do malabarismo circense de Sarkozy, a líder da oposição Ségolène Royal defendeu que o presidente francês ‘não teve nada a ver’ com a operação militar.

Um outro interessado no mito Ingrid é o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe. Eleito em 2002 e impedido pela Constituição de se candidatar a um terceiro mandato nas eleições de 2010, a libertação de Ingrid e os vários golpes militares sofridos pelas Farc nos últimos meses criaram condições para que o presidente colombiano aspire a uma nova emenda constitucional que lhe permita uma segunda reeleição sem a necessidade de realização de um referendo. A União Européia já sancionou essa idéia.

Significado esquecido

Também Ingrid já foi acusada de ter agido intencionalmente para alavancar as suas ambições políticas – visto ela saber que a zona de San Vicente del Caguán, onde foi raptada, era um bastião das Farc. Foi o que fez novamente esta semana o famoso escritor colombiano Fernando Vallejo, autor de A Virgem dos Sicários (Companhia das Letras), durante uma palestra na VI Festa Literária Internacional de Paraty.

Finalmente, os presidentes Hugo Chavéz e George Bush, com a popularidade em baixo, também insistem em colher os louros. O primeiro chamou esta semana ‘irmão’ a Uribe algumas semanas depois de o ter chamado ‘assassino’ e ‘narcotraficante’. Em junho, Chavéz afirmara que já não havia lugar para guerrilhas na América Latina, o que pode ser considerado como uma tentativa de se desmarcar da assistência que tem dado ao grupo rebelde. Bush, por outro lado, conseguiu mitigar as críticas ao plano norte-americano de assistência militar à Colômbia, no valor de 700 milhões de dólares anuais, feitas por grupos de direitos humanos e pela oposição colombiana.

Após a queda do império persa e o desaparecimento da escrita cuneiforme, o significado da inscrição de Behistun (hoje patrimônio da Unesco) foi esquecido. Apesar do aproveitamento político e da intoxicação pela mídia, o mesmo poderá acontecer com Ingrid. Como disse Fernando Pessoa, ‘O mito é o nada que é tudo/O mesmo sol que abre os céus/É um mito brilhante e mudo’.

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Doutor em Estudos de Paz e dos Conflitos pela Universidade de Gotemburgo, formado em Negociação Internacional pela Universidade de Harvard e investigador na Universidade da ONU