Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Acordo ortográfico já, mas devagar

Ao ministro da Educação, Fernando Haddad, credite-se o mérito de propor e implementar providências essenciais à Educação. À imprensa, debite-se a insuficiente atenção que dá a questões que fazem por merecer que a sociedade nelas se aprofunde.


Vamos a um caso concreto, um dos mais recentes. O Diário Oficial da União, na seção IN. 87, pág.11, publicou em 8 de maio de 2008, a Resolução nº 17, de 7 de maio de 2008: ‘Autoriza a adequação dos livros escolares de ensino fundamental e médio às mudanças implementadas pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.’


O Estadão, em matéria de Renata Cafardo, tratou do assunto logo na edição de 9 de maio, sexta-feira: ‘O Ministério da Educação (MEC) publicou ontem uma resolução no Diário Oficial da União exigindo que os livros didáticos que serão comprados para as escolas públicas a partir de 2010 estejam de acordo com as novas normas ortográficas da Língua Portuguesa. O mesmo documento também autoriza as editoras a já fazerem essa adaptação no ano que vem. O governo brasileiro é um dos maiores compradores de livros didáticos do mundo; em 2007 foram cerca de 120 milhões de exemplares.’


Trema e acentos


É melancólico o que vem ocorrendo. Um tema de tamanha importância não pode ser reduzido a um problema de compra e venda de livros! A língua portuguesa é, principalmente, o nosso meio de existir como Brasil e como brasileiros, vez que somos uma das maiores nações do mundo e a língua portuguesa cobre todo o território nacional.


Esta unidade lingüística, como se sabe, foi obra do marquês de Pombal, que, para tomar a providência não consultou ninguém, pois era um déspota esclarecido. Para nossa sorte, porque depois pulularam autoritários ignorantes de diversos calibres que tomaram providências nefastas ou se omitiram em face de graves questões nacionais, empurrando o Brasil para um atraso que é erroneamente apresentado como fatalidade ou destino.


Reitera o texto de Renata Cafardo no Estadão: ‘O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi assinado em Lisboa, em dezembro de 1990, e ratificado pelo Brasil e por outros três países de língua portuguesa. O parlamento de Portugal deve votar o acordo no dia 15, mas sua aprovação é contestada por intelectuais que já reuniram mais de 17 mil assinaturas contra o projeto. Entre as principais mudanças no Brasil, estão a eliminação do trema e dos acentos diferenciais.’


Tropeços na grafia


Pois é, no mesmo parágrafo, uma informação subsidiária – a eliminação do trema (que a Folha já eliminou à margem da lei há muito tempo, com a cumplicidade de muitos, evidentemente) e dos acentos diferenciais – e uma informação relevante: Portugal, com um número de ouvintes, falantes, leitores e escreventes – nesta ordem, por favor – cerca de dez vezes menor do que os que ouvem, falam, lêem e escrevem em português no Brasil, faz ferver o assunto, tão pertinente e de interesse nacional.


E nós? Vamos limitar o tema a um negócio de livreiros? Precisamos reagir. O Acordo Ortográfico é bem-vindo, mas o tema é repleto de sutis complexidades. Eliminando pura e simplesmente os acentos referidos, podemos, com a pressa que a senhora do cágado não tem, repetir-lhe a designação, não mais para designá-la, mas para designar o que faremos.


O Brasil precisa aprofundar este acordo e seus termos. Gastamos milhões de verbas na educação para ensinar aos que chegam à escola uma língua sem lógica no léxico.


Ensinamos à criança que chega à escola que ‘feliz’, com som ‘s’ no final, se escreve com ‘z’, que tem som de ‘z’ e por isso é a letra inicial de zebra, Zé, sendo José com ‘s’, e daí o ‘som’ tem som de ‘z’ como em trânsito, também escrito com ‘s’. Se vamos caçar, caçamos com cedilha, mas se vamos retomar o mandato do deputado, daí cassamos com ‘s’. A palavra ‘exceção’ já eliminou candidatos de alta competência em seus ofícios, mas que tropeçaram na grafia do verbete que os excluiu! Se pedirmos a um excluído que escreva o que ele é, sabendo os rudimentos da escrita, ele provavelmente escreverá ‘escluído’ e será excluído outra vez.


Parlamento precisa assessoria


Ao longo dos séculos, uma elite esperta exigiu que fossem escritos em português vernacular formulários, requerimentos, cartas, ofícios e demais papéis que compõem a Torre de Papel do Estado brasileiro, quase sempre resultando em Torre de Babel, pois ao fim nem quem deu a ordem já a entende mais quando vai exigir-lhe o cumprimento, daí ser nosso país o paraíso dos bacharéis. Houve o caso de um juiz que determinou fosse o réu recolhido ao ‘ergástulo público’ e a autoridade encarregada de cumprir a ordem informou que na localidade não havia ergástulo, somente cadeia. (O juridiquês, porém, é um capítulo especial.)


Impedido de dominar a norma culta, por fatores que não podem ser desenvolvidos num artigo tão pequeno, o povo reivindica a metade do que precisa. A elite, que sempre impôs ou fez todos os acordos ortográficos, concede a metade do que foi reivindicado; afinal somos ases na arte da negociação, menos daquela que mexe com os seus seculares privilégios, entre os quais está o de determinar como vamos escrever a língua que falamos! Resultado: quando há final feliz numa reivindicação popular, o povo ganha apenas 25% do que reivindicou! E esta é uma das grandes questões de língua portuguesa!


Que o Acordo Ortográfico receba da mídia a atenção que faz por merecer! Estão ocorrendo verdadeiros crimes de lesa-língua, que no limite são crimes de lesa-pátria e já é mais do que hora de interrompermos o assassinato da língua portuguesa em avisos públicos, cartazes, informes, instruções de bordo, gravações de atendimento automático, telemarketing etc. Também a imprensa, ao abolir a função de revisor, está colaborando com o rebaixamento da língua portuguesa no Brasil!


E, por fim, um Parlamento como o nosso precisa estar bem assessorado nesta hora. Se o Acordo Ortográfico for votado com base no conhecimento que nossos parlamentares têm da língua portuguesa, daí será o caos! Se for votado nos moldes de outros acordos já realizados na Câmara e no Senado, temos muito o que temer!


A língua portuguesa é nossa! Vamos fazer um acordo que sirva a todos nós, não apenas a quem quer fazer negócios com a língua portuguesa!

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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século); www.deonisio.com.br