Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Adeus Quarto Poder, agora você é indústria

Um ‘criativo’ da velha McCann Erikson carioca inventou, no início dos anos 1940, um slogan para o Repórter Esso, logo incorporado ao repertório de metáforas cotidianas: ‘testemunha ocular da História’. Ao longo de quase sete décadas ninguém percebeu a redundância: toda testemunha é ocular (as de oitiva, geralmente suspeitas). Apesar do pleonasmo, a expressão colou. Mais do que isso: não apenas o Repórter Esso, mas todos os jornalistas foram convertidos em testemunhas oculares da História.


Nos dias 18 e 10 de agosto, em São Paulo, testemunhamos um momento crucial na história do jornalismo pátrio quando, por vontade própria, o seu segmento mais poderoso resolveu praticar um haraquiri coletivo – deixou de ser serviço público para converter-se em indústria. E, como indústria, admitir sua inevitável e recorrente obsolescência.


A metamorfose se deu no 7º Congresso Brasileiro de Jornais, quando o patronato, convocado pela Associação Nacional de Jornais (ANJ), tirou a imprensa da nobre condição de Quarto Poder, revogou uma simbologia há mais de dois séculos entranhada no âmago das democracias representativas e apresentou-se como Indústria Jornalística.


Conteúdo e função


Livre-arbítrio é isso. Eliminando eventuais sentidos pejorativos (relativos a astúcia e ardil), a palavra indústria aplica-se ao conjunto de pessoas, processos e maquinário envolvido no fabrico de determinado produto. Tudo bem: indústrias geralmente associam-se à noção de progresso, produzem lucros, lucros movimentam a economia, distribuem riquezas, promovem o bem-estar material.


O Quarto (ou Quinto ou Sexto) Poder é outra coisa, situa-se na esfera pública, é a matriz da cidadania, do civismo e da participação política. O Quarto Poder era o poder que fazia do indivíduo uma força coletiva.


Convém lembrar que a internet americana, apesar da sua pujança, não conseguiu nem jamais conseguirá tirar um presidente da Casa Branca como aconteceu com Richard Nixon. A prova está em George W. Bush, que ganhou a primeira eleição no tapetão e no segundo mandato está levando a maior superpotência para o brejo.


Quando a imprensa era instituição, jornais também deveriam ser lucrativos, mas nos intervalos entre balancetes e balanços havia um compromisso com o interesse público.


A metamorfose ocorreu nestas bandas dentro do período dedicado à comemoração dos 200 anos da imprensa brasileira (13 de maio – 10 de setembro), como se a nova indústria quisesse livrar-se formalmente da condição anterior.


O primeiro periódico a circular livremente no Brasil dizia na primeira sentença do seu primeiro texto que ‘o primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela’ (Correio Braziliense, nº 1, pág.3, 1º de junho de 1808).


Exatos 200 anos depois, não contente em obliterar a data para apagá-la da memória nacional, a nova indústria jornalística muda a sua própria natureza. Sua preocupação passa a ser meramente tecnológica. Gerou uma formidável ferramenta – a internet – e agora se submete a ela, mesmo reconhecendo suas limitações. A web era um meio, agora converteu-se num fim, algumas coisas perderam-se no meio do caminho – conteúdo e função – mas ninguém está interessado nelas.


Matérias escondidas


A pauta do 7º Congresso Brasileiro de Jornais foi rigorosamente não-jornalística e intensamente internetística, digital. Basta ver as matérias publicadas nos dias seguintes pelos três jornalões responsáveis pelo convescote.


1º dia, edições de 19/8


** O Estado de S.Paulo (pág. B-14): ‘Congresso traça cenário positivo para a indústria de jornais; empresários e executivos dizem que, mesmo passando por mudanças radicais [isto é, internet], jornais continuarão a crescer’


** Folha de S.Paulo (pág. A-10): ‘Ministro vê crescimento robusto de jornais; Miguel Jorge diz que `grandes títulos na internet são os mesmos dos impressos no Brasil´’


** O Globo (pág. 24): ‘Jornais defendem uma nova Lei de Imprensa; associação propõe regulação mínima com mecanismos de direito de resposta e fixação de indenizações’ [os concorrentes também levantaram a questão da Lei de Imprensa em matérias secundárias]


2º dia, edições de 20/8


** Estado de S.Paulo (pág. B-15): ‘Classe média dá impulso a jornais; presidente de associação de mídia diz que jornais têm cinco anos para se adaptarem à era digital’


** Folha de S.Paulo (pág. A-10): ‘Leitores associam jornais a confiabilidade, diz pesquisa’


** O Globo (pág. 25): ‘ANJ: desafio é conquistar fidelidade do novo leitor; segundo presidente de associação, jornais têm de aproveitar expansão da classe média e levar conteúdo para a internet’


Estas foram as matérias principais, escolhidas a dedo pelos editores para ‘vender’ os conceitos que marcarão a nova indústria. Textos mais importantes, porém relacionados com o statu-quo ante, não tiveram igual destaque:


** ‘Especialistas divergem sobre a interação entre jornal e internet’ (Folha, 20/8, pág. A-10)


** ‘O jornal é a âncora do mundo, diz a pesquisadora’ (Estadão, 20/8, pág. B-15)


** ‘Informação de qualidade é uma coisa rara’ (idem)


** ‘Pesquisa aponta credibilidade do jornal; para entrevistados por Ipsos Marplan, impresso é `âncora do mundo´’ (O Globo, 20/8, pág. 25)


Matérias ‘leves’


No fim de semana seguinte ao Congresso (23 e 24/8), os jornalões apareceram com ‘pesquisas’ realizadas por diversas assessorias de comunicação para mostrar a importância do meio jornal para os multiplicadores de opinião.


Este frenesi histérico-badalativo para promover a nova indústria revela, antes de tudo, um total desnorteamento dos seus dirigentes no tocante ao futuro: o que é que se pretende até 2020, ou melhor, qual o sentido da convocação para ‘Re-Construir o jornal para a Era Digital’?


Algo foi destruído? Ou algo precisará ser destruído para que em cima dos escombros seja erigido um novo medium?


A grande verdade é que a ANJ está novamente diante de uma crise de identidade, a terceira desde a sua criação.


Início dos anos 1980, regime militar exaurido, a nova geração de empresários-jornalistas que tornou possível a criação de uma entidade patronal concluiu que não havia mais lugar para o jornalismo pré-1964.


As redações são expurgadas da velha-guarda ‘romântica’, inicia-se um delírio novidadeiro acompanhado pela cruzada para acabar com a obrigatoriedade do diploma e assim abrir as portas dos jornais à ‘modernidade’. Ícone do período foi o USA Today, paradigma do jornalismo sintético, híbrido de jornal com TV (a propósito: que fim levou o USA Today?).


Dez anos depois, início dos 1990, Fernando Collor de Mello escorraçado, os estrategistas da ANJ acharam que o vácuo de poder deixado pelos militares precisava ser preenchido por uma imprensa poderosa, infalível, arrogante. Ferramenta escolhida: o denuncismo. Derrubar presidentes era o sonho de qualquer estagiário, sobretudo quando era do PT. A palavra de ordem era aumentar a circulação a qualquer preço. O marketing virou panacéia. Convocaram-se os consultores de Navarra para inventar maneiras de atrair jovens e mulheres que, segundo eles, só conseguiriam pegar num jornal se tivesse muito infográfico (uma imagem vale 10 mil palavras – lembram?), muita matéria ‘leve’, pouco noticiário internacional, muitas páginas de medicina e comportamento.


Vítima do progresso


Os jornais se converteram em meros envelopes de fascículos, as tiragens dobraram, era preciso comprar novos equipamentos gráficos, ninguém se preocupou com o fato de que os jornais tornavam-se descartáveis, simples veículos para distribuir as séries colecionáveis.


Passada outra década, novo surto suicida: diante da expansão da internet, jornais assumem previamente que desta vez não conseguirão enfrentar as novas tecnologias (como acontecera no século passado, com o advento do rádio e da televisão). Não se contentam em usar as formidáveis ferramentas digitais para qualificar o seu conteúdo, querem usá-las para o seu sepultamento.


A imprensa está utilizando o seu potencial messiânico e o poder de pavimentar as profecias para anunciar a própria destruição. Desiste de seu papel de provocador de avanços para conformar-se como vítima de um imponderável e precário progresso.


Livre-arbítrio é isso.


 


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