Desafiador, este webjornalismo participativo. Ora aclamado, ora condenado. Polêmico, mas ao mesmo tempo fascinante. O interessante de se lidar com o jornalismo colaborativo na internet é que ele pode nos levar a diversas direções. Algumas são de fácil acesso, como as definições maniqueístas que, muitas vezes, aparecem por aí. Outros caminhos, mais complicados, merecem ser explorados e nos revelam áreas para promissoras pesquisas e práticas.
Sim, o webjornalismo participativo gera receio. Mas muito mais pela desinformação que pela análise e compreensão de seus pilares produtivos. E são estas lacunas que acabam cooperando para um esvaziamento teórico e empírico ou para a disseminação de formas de preconceito. Antes de se julgar o jornalismo ancorado na colaboração é preciso conhecer seus fundamentos. Assim como outros pesquisadores, me disponho, neste artigo, a pontuar suas características principais, desbravando essas águas jornalísticas ainda pouco navegadas, mas que reservam inúmeras riquezas intelectuais.
A circulação de informação, privilegiada desde o seu embrião, foi um passo natural na evolução histórica de produção na internet. As ferramentas – de criação, edição e publicação de fácil manuseio – e a convergência de mídias estimularam as pessoas a relatar os mais diversos fatos e a criar grupos de discussões em torno deles. Os meios estavam disponíveis para que qualquer cidadão que tivesse acesso pudesse se expressar e compartilhar suas notícias com outro ou com comunidades online.
A interação e a instantaneidade sacramentaram a possibilidade de uma ‘cobertura’ cidadã. A audiência, que na maioria das vezes teve sua participação restringida e filtrada, passou de mera receptora a participante ativa no fluxo de produção jornalístico. Insisto no termo jornalístico, pois tais colaborações, sem generalizar, são ricas em singularidades históricas, contextuais e informativas.
Facetas comerciais
A rede de notícias criada por cidadãos comuns na web após os atentados contra o World Trade Center em Nova York, em 11 de setembro de 2001, comprova empiricamente o desenrolar desse processo. Diante da perplexidade junto aos acontecimentos, a cobertura dos sites e dos meios tradicionais não satisfez a necessidade de informação que as pessoas carregavam. Elas tinham que entender coletivamente o que se passava e a solução para suprir esse anseio foi dar o seu relato pessoal e buscar o dos outros. As peças do quebra-cabeça, aos poucos, foram se encaixando e novos contextos se disseminaram.
O webjornalismo participativo é uma conseqüência do desenvolvimento das formas colaborativas na rede. Ancorado no papel preponderante da audiência na produção e na publicação de conteúdos jornalísticos, torna a relação emissão / recepção dinâmica e igualitária. O sistema centrado no ‘todos-todos’, ou seja, todos produzindo para todos, é o pilar dessa organização. Organização em que as etapas do processo comunicacional (discussão e elaboração da pauta, apuração, desenvolvimento do texto, futuras correções) se inserem nas trocas relacionais, nos ambientes de interação que permeiam as relações sociais.
A colaboração ativa é essencial na prática, pois, sem ela, o hiperdocumento perde sua razão funcional. Sites de webjornalismo como OhMyNews, o Brasil Wiki e o Digga, e hiperdocumentos colaborativos (que também produzem conteúdos jornalísticos) como o Slashdot, Centro de Mídia Independente e o Wiki já aplicam esses fundamentos. Não se pode confundir tais práticas com manifestações que só querem explorar as facetas comerciais do webjornalismo participativo, como os exemplos nacionais do Foto-Repórter, da Agência Estado e o Vc Repórter, do Portal Terra. Neles, as contribuições são filtradas de acordo com interesses de cada corporação e a capacidade das pessoas de produzir, editar e publicar materiais pertinentes e de utilidade pública é aproveitada de forma mínima para se obter mais rentabilidade e lucratividade.
Agenda setting e newsmaking
O processo interativo mantido entre os sujeitos envolvidos na produção comunicacional do webjornalismo participativo é outro foco de abordagem deste presente artigo. Seria contraditório aplicar a tal conceito de interação modelos mecanicistas ou tecnicistas. Tampouco poderia enquadrar a relação social construída em pontos de vista individuais, pois ela é estritamente coletiva. Por isso, adotei a abordagem sistêmico-relacional do professor e pesquisador Alex Primo. Ele desenvolveu um estudo da interação mediada por computador direcionado para as peculiaridades do processo cognitivo humano.
O seu objetivo foi o de evidenciar a importância das relações que integram as ações dos sujeitos envolvidos, ou seja, o que se passa entre os atores de determinado encontro comunicativo. Segundo Primo, estes relacionamentos se moldam ao mesmo tempo em que acontecem os eventos interativos, impactando-se com contextos sociais e temporais. Os participantes estão em constante modificação, pois seus comportamentos sofrem influência, mesmo que não possa ser previsto, das ações anteriores. Com isso, constata-se que a negociação no webjornalismo participativo é constante. Ao se propor uma produção em conjunto, objetiva-se construir uma conversação que dote a mensagem de sentido para ambas as partes e permita uma troca potencial de informações. Todo esse fluxo interativo foi definido, por Primo, como um processo de interação mútua.
A interação mútua aplicada ao webjornalismo participativo tem reflexos na definição e no desenrolar dos temas a serem tratados durante o processo de produção informacional. Nota-se que a participação da audiência gera um agendamento de assuntos que atende às suas necessidades. Revela-se realmente a existência de um interesse público. Os fatos tratados não vão se resumir aos propagados pelos veículos off-line. Não há um controle vertical da informação. É possível fugir das lógicas massivas do agenda setting e do newsmaking, que determinam o grau de noticiabilidade dos assuntos. É claro que um processo não exclui o outro, pois claramente a agenda dos mass media também reverbera no meio digital, mas a diversidade é incentivada e ampliada.
Grandes reportagens na rede
Outra característica relevante é o não encerramento do conteúdo após sua publicação. A adição de informações por parte dos participantes é constante e atemporal. As discussões sobre os fatos se desenrolam e acabam sendo decisivas para sua compreensão. A relação com as fontes também se altera. Se ao longo do processo histórico do jornalismo, as oficiais foram cada vez mais valorizadas, no webjornalismo participativo os reais personagens dos acontecimentos não são deixados de lado. Todos podem ter sua voz. Com isso, o conteúdo torna-se mais ‘humano’ e os contextos se expandem.
A estrutura e a composição da mensagem jornalística também merecem atenção diante dessa reconfiguração dos processos comunicacionais. O webjornalismo participativo ‘resgata’ a prática de se contar uma história ao se apropriar de um fato para a produção de uma mensagem jornalística. Audiência e jornalistas desenvolvem suas matérias com maior flexibilidade de narrativas, de tempo e de abertura para novas fontes. A técnica da pirâmide invertida, que consiste na hierarquização das informações do mais para o menos importante, não é uma unanimidade. Os repertórios cognitivos são variados e interessantes. Encontram-se conteúdos que privilegiam a imersão do repórter na realidade, escritos com estilos marcantes, principalmente no que se refere ao uso de símbolos, de técnicas e de narrativas criativas.
O trabalho em conjunto estimula a discussão e a busca por tal estilo. A atração do leitor e a transmissão de um sentido sobressaem a uma adequação de espaço, tempo e filtros. É importante ressaltar que, contrariando a suposição de que a internet privilegia a publicação de textos pequenos, a disseminação de reportagens e grandes reportagens na rede já é uma realidade.
Retomada de técnicas e valores
Previsões catastróficas, supondo que os jornalistas e o próprio jornalismo sucumbiriam ou que sua função não faria mais sentido no webjornalismo participativo tornaram-se constantes e transformaram-se em alvo de especulações. Não entro aqui em propostas sem fundamentos e, por isso, acato e destaco as pesquisas do jornalista e professor Jorge Rocha. Em sua linha de estudo, ele prova que as práticas colaborativas não rebaixaram ou desmereceram a profissão; pelo contrário, proporcionaram uma reflexão para que ela possa ser reavaliada.
Notoriamente, o jornalista não pode ser analisado apenas como um mediador ou um filtro. De acordo com Rocha, o profissional deve trabalhar como um cartógrafo informacional. Isto é, primar pela seleção, enquadramento e personalização da informação, estimulando o trabalho em conjunto com a audiência e servindo de ‘ligação’ entre as comunidades virtuais e demais pessoas. Essa demanda exige que ele leve em conta a constituição do hiperdocumento no qual essa interação é realizada, além da exploração do caráter informativo das mídias convergentes e do seu formato no ambiente digital.
O webjornalismo participativo encontra-se em um processo de afirmação quanto à sua organização de produção, publicação e à sua condição de importante veículo jornalístico. As tentativas para se alcançar o máximo de qualidade e de credibilidade estão sendo realizadas e prova disso é o crescimento dos sites ancorados na prática.
Cabe aqui ressaltar que não pretendo afirmar, com este artigo, que o webjornalismo participativo seja uma prática perfeita. Erros e falhas, naturalmente, também são cometidos. A falta de contraposições de informações, o descuidado editorial, a precária estrutura jornalística de alguns hiperdocumentos são alguns exemplos. Mas procurei aqui evidenciar suas qualidades, para que futuras publicações reflitam quanto às suas características e possibilidades e, principalmente, ao seu alcance. Observo que alguns sites ainda não se dão o valor devido e não privilegiam uma estrutura jornalística.
Talvez não tenham noção de que o seu desenvolvimento é essencial para a difusão de parâmetros descentralizadores de produção e para o futuro do jornalismo na internet. Em compensação, hiperdocumentos como o OhMyNews, Digga e BrasilWiki, por exemplo, traçam o caminho oposto e provam que o webjornalismo participativo é uma prática consistente, atraente e potencial. É necessário também que se discuta a diferenciação entre jornalismo colaborativo e conteúdo colaborativo, para que os conteúdos não sejam minados por intenções outras que não sejam jornalísticas.
Espero que o interesse de jornalistas e estudantes de Jornalismo pela prática do webjornalismo participativo cresça. Por mais que não seja de todo conhecido, possibilita o exercício de uma produção crítica e a retomada de técnicas e valores que privilegiam a comunicação contextualizada e fomentada por processos enriquecedores de aprendizado.
******
Jornalista, Belo Horizonte, MG