Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alberto Dines

‘Depois do massacre terrorista do 11 de Março, a capital espanhola pode entrar no dicionário das metáforas políticas como representação da miopia e da má-fé. José Maria Aznar, o premier derrotado nas eleições ocorridas três dias depois, corre o risco de adjetivar o seu sobrenome convertendo-o em sinônimo de asneira.

Representante do conservadorismo espanhol mais entranhado, filho do integrismo católico do qual a Opus Dei e Mel Gibson são filhos diletos, Aznar é o representante da direita dita moderna, empresarial, de cara lavada, versão ibérica do seu parceiro d’além-mar, George Bush. Seu vizinho e aliado, o premier português, Durão Barroso, pode ostentar, pelo menos, um passado como militante maoísta. Aznar é o reacionário puro-sangue, impoluto.

Recusou as primeiras evidências, manipulou a imprensa, inclusive o prestigiado El País, ensaiou um adiamento das eleições (como depois se revelou) seguiu a cartilha do xaveco, do golpe branco. Pagou caro.

O vencedor José Luís Zapatero não representa apenas a volta dos socialistas ao poder, representa aqueles Anos de Ouro (1982-1996) em que a Espanha voltou a brilhar no cenário internacional. Zapatero é herdeiro de Felipe González e do grupo de intelectuais como Jorge Semprun, que estabeleceram as bases de uma Terceira Via muito antes do fim do Muro de Berlim.

O eleito teve o cuidado de prometer um combate sem tréguas ao terrorismo – que indiretamente o favoreceu – e condenar a invasão do Iraque que classificou de ‘desastre’ e ‘fiasco’. E foi adiante, ao garantir que a Espanha tirará seus 1.300 soldados em junho se a ONU não assumir o controle da reconstrução do país.

Campanha eleitoral encerrada, Aznar convertido numa página virada da história, indispensável retornar ao 11-M. Agora que os cadáveres foram sepultados – inclusive o do paranaense Sérgio dos Santos Silva – imperioso examinar a extensão do episódio. Esquecer essa carnificina é validar a chantagem do terror.

Comparada à sangueira de Nova York, a de Madri representa um up-grade. O 11-S foi concebido e executado como um grande espetáculo terrorista com objetivos difusos, a não ser o de confrontar o poderio dos EUA. A ação madrilena foi clara, objetiva, pretendeu influir diretamente na eleição. E os resultados, se apressadamente avaliados, poderão servir para legitimar o terrorismo como ação política. O ato de escolher governantes faz parte do processo democrático, cédulas manchadas de sangue são a consagração da tirania.

Certas esquerdas consideraram o 11-S como uma boa lição ao governo americano. O teólogo Leonardo Boff chegou a dizer que quatro aviões-bomba foram insuficientes, queria mais, depois retratou-se. Outros disseram maiores barbaridades e continuam defendendo o princípio cínico de que os fins justificam os meios.

Zapatero não esqueceu que a ONU foi expulsa do Iraque pelo terrorismo. O assassinato de Sérgio Vieira de Mello não visou a pessoa ou o seu país natal, foi um brutal repúdio a qualquer possibilidade de mediação da ONU. O terror não quer soluções, quer problemas. Só assim poderá exercer o poder de aterrorizar e influir.

Madri não pode representar uma capitulação. Em Munique, a França e a Inglaterra entregaram os Sudetos a Hitler e submeteram-se ao nazi-fascismo. Encantado com o seu feito diplomático, o premier britânico Neville Chamberflain fez as manchetes em 30 de setembro de 1938, quando prometeu ‘paz para o nosso tempo’. A maior mentira do século. Onze meses depois, Hitler invadiu a Polônia e iniciou-se a mais terrível guerra da história da humanidade.

A vitória socialista na Espanha em 2004 não pode ignorar que em 1933, quando Hitler tomou o poder, as primeiras vítimas do terror político foram as forças progressistas, sobretudo os socialdemocratas.

O terrorismo não pode ser visto como projeto ideológico, nem programa partidário, é a sanha irracional. Ao insistir na solução multilateral para enfrentar o unilateralismo americano, Zapatero não pode esquecer o unilateralismo do terror islâmico. Madri não pode confundir-se com Munique.’



Guilherme Fiuza

‘Explodiu o trem e ligou a TV’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 17/03/04

‘Bush torce pela Al Qaeda. Boa parte dos civilizados do Ocidente também. É preciso dar consistência e cara ao mal, de uma vez por todas. De novo dia 11? Dois anos e meio depois? Carta enviada a jornal com trechos do Alcorão? Pronto, foram eles outra vez. Mas, eles quem? Sabe-se lá. Pelo menos tem-se um motivo mais ou menos definido para as paranóias e as passeatas.

Para ser honesto consigo mesmo, o mundo precisaria admitir que não sabe nem se foi Osama Bin Laden quem derrubou o World Trade Center. Se o terrorista saudita fosse capturado amanhã, não haveria sequer elementos suficientes para condená-lo pelo 11 de Setembro. A não ser que ele confessasse. Nessa floresta de bilhetes em nome de Alá, gravações com citações à Al Qaeda e bravatas em árabe divulgadas pela TV Al Jazeera, a fronteira entre realidade e literatura é quase invisível.

Os não-bárbaros deste início de século querem acreditar na tal Al Qaeda como um poderoso e organizado Estado paralelo. É sua esperança de delimitar o mal. A idéia serve aos dois lados. Entre os que querem barbarizar os não-bárbaros, a grife espalhada com a força de mil Dudas Mendonças também tem grande serventia. Eu tenho detonadores e pólvora, você tem computador e modem, ele tem celular e sobrenome árabe. Todos já estrangulamos pelo menos um velhinho na família. Quem somos nós? Somos uma célula da Al Qaeda na Bolívia, e vamos atrás de apoio e dinheiro pela internet.

O resto, o mundo civilizado faz. Ele está sempre pronto a dar status e reputação a delinqüentes mais ou menos carnavalescos. Numa cidade como o Rio de Janeiro, três moleques com 24 horas de cocaína na cabeça descem o morro e metralham uma cabine policial. No dia seguinte, assim que surgir na TV a primeira interpretação de que aquilo foi um recado do crime organizado às autoridades, estará fundada a mais nova célula do Comando Marrom, Preto ou Cor de Abóbora.

Enquanto isso, os sanguinários que explodiram os trens em Madri correm para a frente da televisão. Ali, se deliciarão com a dimensão épica que a sociedade civilizada lhes dará: falarão de suas prováveis convicções religiosas, estratégias políticas, sofisticação tecnológica, da revolução geopolítica que se anuncia, quem sabe até uma nova ordem mundial. Tudo ilustrado pela mais colorida estética pacifista, rostos pintados em passeatas monumentais, comoventes e óbvias, repletas de cartazes e plaquetas de ‘basta’, ‘paz’, ‘fora Bush’. O que seria dos sanguinários sem a racionalidade dos cultos, para lhes tirar do vazio da barbárie e lhes dar sentido?

O atentado de Madri fez o povo mandar o governo de um país central de volta para casa. Os espanhóis pareciam satisfeitos com a administração que lhes trouxera o ciclo mais próspero em décadas, mas… Em dois dias concluíram que a Al Qaeda não queria mais aquele governo, e é melhor não discutir com esses caras.

Mas quem é mesmo a Al Qaeda? Quem a representa, quem manda nela, quem obedece a ela, quem exatamente a financia, onde ela se reúne na face da Terra? Quantos grupelhos terroristas desconexos ainda colocarão bombas por aí em nome do mito de Osama, destruidor do império americano? Como os espanhóis e o mundo conseguem temer com tanta convicção um sujeito que, se vivo estiver, está submetido a todo tipo de asfixia financeira, física e social? Depois da invasão do Iraque, Saddam Hussein foi tido como o general oculto da resistência. Até o dia em que o encontraram encurralado num buraco, incomunicável, sem autoridade nem para pedir um sanduíche.

Depois das passeatas pela paz, que rendem imagens impactantes e enchem os terroristas de orgulho, os espanhóis levaram ao poder um socialista. Ele não perdeu tempo: disse que pretende se engajar no programa Fome Zero do brasileiro Lula, sucesso mundial de abstração e retórica. Ou seja, vem aí, a exemplo de outros talentos do ramo, como o argentino Nestor Kirchner, mais um gigolô de valores humanitários. É o homem escalado pelo povo para se desculpar com a Al Qaeda pela política externa de seu país.

Observando-se o acontecido em Madri, parece cada vez mais distante o dia em que as sociedades civilizadas vão deixar de se esparramar em cachoeiras de indignação e cultos a assombrações; que as manifestações coletivas deixarão de ser previsíveis e inócuas, tomando o rumo, quem sabe, das ações de responsabilidade espontânea.

Uma brigada de cidadãos voluntários, por exemplo, poderia aumentar concretamente a segurança numa estação de trem. Melhor do que ficar ouvindo alertas do governo para que passageiros informem sobre mochilas viajando sozinhas (faltou esclarecer se é para avisar antes ou depois delas explodirem). E, certamente, melhor também do que ficar repetindo slogans contra inimigos imaginários.’



Pedro Dória

‘O poder devastador da mentira’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 18/03/04

‘Dos comentários no Weblog cá do NoMínimo às melhores páginas dos diários nacionais e estrangeiros, uma leitura vem lentamente predominando a respeito das eleições espanholas. Segundo ela, o terror venceu ao mostrar sua capacidade de derrubar o governo quando, às vésperas do pleito, todas as pesquisas indicavam uma vitória acachapante do Partido Popular. Na escolha dos socialistas, no recuo do povo espanhol perante o medo, estaria uma das mais cruéis vitórias da Al Qaeda.

Sem dúvida alguma é leitura possível e coerente – pode-se sustentá-la com ótimos argumentos. Mas é apenas opinião. E para entender a vitória socialista por este prisma é preciso ignorar que o governo Aznar mentiu sem qualquer pudor nos momentos seguintes ao crime; ignorar que o povo espanhol sempre foi contra a invasão ao Iraque. É preciso ignorar, também, que nos últimos 70 anos a Espanha viveu uma guerra civil bárbara, uma ditadura longa e atordoante e conviveu com a crueza do terrorismo basco nas últimas décadas. O sangue é cotidiano na Espanha, das arenas às bombas; o ódio separatista, as diferenças culturais e étnicas, estas não são matéria de livro para o espanhol: são seu dia-a-dia.

É claro que o atentado do 11 de Março foi particularmente cruel. Mas não foi nenhuma Guernica. E nem após Guernica a resistência espanhola ao fascismo (também espanhol) cedeu. Morreu lutando. Uma vitória do terror? E se, apenas como recurso retórico, decidíssemos que foi apenas o atentado que provocou a mudança de opinião do eleitor? Poderia ser por medo, sim. Ou poderia ser racional, que gente habituada ao sangue pensa sob pressão: esta estratégia de lutar contra este inimigo não funciona, cogitaria com seus botões o eleitor fictício; de fato, precisamos de outra. Então seu olhar cai, simpático, sobre o candidato socialista ali na esquina.

Tudo teoria que fatos, não os temos. Não estão disponíveis por aí quaisquer pesquisas dia após dia entre os atentados e o pleito que permitam enxergar o momento da virada. Aquele momento em que um número suficiente de eleitores decidiu mudar seu voto. Talvez, aliás, a repetição diária de pesquisas ainda assim não fosse capaz, entre quinta e domingo, de flagrar o espírito desse momento. E ele é profundamente relevante. Indicaria, por exemplo, as causas, se pela mentira, se pelo medo.

Mas vai aí um outro dado relevante: em 2000, 68% dos eleitores foram às urnas; agora em 2004, foram 77%. Num país onde o voto não é obrigatório, isso é gente à beça. Quer dizer que as pesquisas anteriores, aquelas que apontavam uma vitória do PP, estavam corrigidas pela hipótese de uma participação e, perante a comoção popular, uma gente que andava desanimada de votar no derrotado compareceu domingo.

Hipóteses, hipóteses. Outra: agora já é noticiário passado que meio gabinete Aznar dedicou-se, nas horas posteriores ao atentado, a difundir a tese de que a culpa era do ETA. Diplomatas, jornalistas, o Conselho de Segurança da ONU, o povo – todos foram alagados pela mentira. Isto, embora o serviço de inteligência espanhol já tivesse, informou o ‘El País’, 99% de certeza de que era do fanatismo islâmico a responsabilidade. Mas e se, num momento de particular grandeza política, José Maria Aznar tivesse cortado o assessor que sugeriu mentir, e tomasse o rumo da televisão para dizer: muito provavelmente foi a Al Qaeda, este é um problema mundial, é uma guerra que já estamos lutando no Iraque, uma guerra perante a qual não nos acovardaremos.

Não é preciso concordar, basta cogitar: fato é que qualquer tentativa por parte da oposição de dizer que a Espanha nada tinha com isso até Aznar apoiar Bush pareceria covarde depois de um discurso destes e, quem sabe, o PP terminasse angariando nas urnas uma maioria com a qual nem Vladimir Putin, da Rússia, sonhou em seus melhores dias. Mas, no fim, são apenas chutes, teorias, opiniões – exacerbações. Como também o é isolar de todo o universo de fatos três pedaços de informação apenas – PP tinha vitória garantida; Al Qaeda explodiu trens; PSOE venceu após quatro dias – para concluir: quem venceu foi a Al Qaeda.

De la mentira

Há um momento desconcertante no processo psicanalítico, que é quando o sujeito no divã descobre uma coisa ridícula de seu terapeuta da qual o analista não consegue escapar pelo desconcerto. Pode ser uma besteira: um ato falho do analista, um puxar de descarga no banheiro ao lado – em geral, é uma besteira. Mas quando acontece, e analista e analisando percebem instantaneamente, o processo acaba. A imagem de autoridade, de segurança que aquela figura tinha para mexer nos meandros da alma do infeliz, tudo de repente desaparece perante um segundo humano de, como diriam os espanhóis, ridiculez.

Algo assim ocorreu ali entre sexta e domingo nas ruas madrilenhas. José Maria Aznar não tinha um governo particularmente simpático – mas era um governo austero, seguro, capaz. Um governo forte. Exatamente o tipo de governo – os adjetivos tratam da imagem, da aparência – no qual um eleitor vota em momentos de desamparo. Só que a mentira foi desmascarada rápido demais. Só pelas primeiras páginas do El País, vê-se. Na edição extra de quinta-feira, dia dos atentados, informava a manchete que o ETA tinha feito um massacre; no sábado, que ‘governo insiste em culpar o ETA’.

Ali o governo ficou fraco. Porque, ao mentir, dizia que ele, governo, tinha medo de que, tendo sido a Al Qaeda, o povo o culpasse; dizia, também, que não tinha escrúpulos de manipular a informação, o que lhe importava era a vitória; não foi o povo espanhol que mostrou-se despreparado para lidar com o terror global, foi o governo do Partido Popular – aquele mesmo que, para fazer guerra longe, achou fácil. Não seria natural, perante um governo fraco cuja autoridade ruiu em poucas horas, votar noutro? Foi o que fez a população – e em massa.

‘Não foi a mentira, embora grave, o pior dos erros que acompanham a despedida de José Maria Aznar’, escreveu segunda-feira o jornalista Juan Luis Cebrián, fundador do ‘El País’. ‘Foi sua insistência em converter em dogmas de fé suas obsessões particulares, suas idéias discutíveis sobre a Espanha e os espanhóis.’ O artigo teve por título De la mentira e tratou, nas entrelinhas, de um problema concreto que os espanhóis foram sábios em corrigir.

A Al Qaeda existe. Não é o produto da imaginação de ninguém. É uma estrutura criminosa profundamente maleável e descentralizada. Originalmente, tinha no saudita Osama bin Laden seu financiador, e no médico egípcio Ayman al-Zawahiri, seu estrategista. Funcionava por meio de células vagamente integradas. Após o 11 de Setembro, virou outra coisa: não precisa ter qualquer contato físico com suas células. Utilizando da tecnologia de comunicação mais sofisticada – como Internet ou telefones-satélite – até a menos – como a distribuição de fitas cassete -, a Al Qaeda transformou-se numa exportadora de técnica e estratégia. Ela lança idéias no ar e inspira sua realização. A maioria delas não precisa dar certo pois cada uma que dá é noticiada com tanta veemência que assim lhe basta.

O objetivo da Al Qaeda não é espalhar terror no ocidente, cá no naco iluminista do mundo. Seu objetivo é angariar apoio no Oriente Médio, dentre uma gente que vive pobre, sem educação ou liberdade. O jeito Al Qaeda de inspirar é mostrando-se mais forte do que aqueles que são mais fortes no mundo: aqueles que têm dinheiro, armas, poder. No fim, querem um golpe de Estado, erguer um outro tipo de ditadura em quantos países muçulmanos for possível.

Não é impossível neutralizar a Al Qaeda mas, para isso, é preciso mexer nos bolsões onde ela é mais forte, nos lugares onde há menos liberdade, mais pobreza, onde um comportamento religioso obsessivamente rigoroso e castrador é imposto. O Iraque não era esse tipo de lugar. O Afeganistão era – e continua sendo. A Arábia Saudita é. Mas num determinado momento alguns líderes mundiais, seja por conveniências diplomáticas, por rancores passados, talvez até por fé cega numa doutrina, decidiram transformar o combate ao crime internacional numa guerra entre nações.

Foi quando o único país muçulmano com regime laico do Oriente Médio foi invadido que o terror fundamentalista venceu. (Ditaduras, ali, são todos em maior ou menor grau.) Mas o terror não venceu a eleição. Pode parecer ter vencido; pode, lá em sua terra, dizer que venceu e pode até parecer crível sua vitória. Só que, no fim, se há um país a menos cujo líder acredita que há uma guerra entre civilizações, o terror perdeu. O terror é só crime – quando for visto dessa forma, seu combate terá sido iniciado.’