Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Amor de internet

Não sei se por anos, décadas ou séculos,

esperei bater à minha porta

certa mulher

A queria altiva, não solene.

Não a queria simples, mas complexa.

Não devia ter a bússola, só o leme

e com ele perseguir o rumo,

qualquer rumo, por qualquer quebrada,

contanto que na caminhada

viesse dar à minha porta,

eu também sem rumo.

Não sei se por décadas ou anos,

esperei pela mulher que não chegava.

Onde estaria? Talvez escondida

num desvão de meus vinte e um anos,

no inventário dos meus desenganos,

numa curva daquela estrada abrupta

que ingressei, quando encarei a vida

Esperei pela mulher que não chegava,

que devia ser altiva, não astuta,

que devia ser paixão, não força bruta,

iluminando a minha existência.

Esperei por muito tempo, muito tempo, muito tempo, muito tempo, muito tempo…

Mas os anos passaram num relance,

e a mulher que eu queria já não era.

Ou era apenas retrato de vinte anos atrás,

dolorido, saudoso, mas retrato.

Agora, dona de casa compassiva e muda,

sem mais nada a ver, presa à labuta

de acordar,

cozinhar,

servir a mesa,

levar os filhos para a escola…

E, à noite, quando o marido se vira para o canto,

relembrar sonhos perdidos.

Mas eis que a fantasia me assombra no dia em que completei um ciclo de vida, uma batalha inquieta que sai da adolescência e chega muito rapidamente ao limiar dos meus cinqüenta anos.

E pela Internet faço um trato,

uma proposta indecorosa e safa

para a moleca que,

dizendo-se Heddy Lammar,

malandramente entra no chat para provocar

com sua jovem erudição desenfreada.

Abriria a ela as portas e os salões

da intelectualidade eloqüente da capital,

que, com seus vanilóquios intermináveis,

fascina a intelectualidade contida do interior.

Em troca, seria confidente e cúmplice,

incumbida de trazer ao chat

a mulher que um dia idealizei,

para um último papo, duas, três lembranças,

um arremate para a conversa inconclusa

cujo desfecho ficou parado no ar

na noite em que enterrei meus sonhos.

A moleca ouviu um tanto intrigada

a proposta descabida e louca,

vinda de quem mal conhecia

– um nick provocador e debochado

cuja diversão mais ostensiva,

consistia em ironizar sua erudição.

Pensou em tratar com desaforo

a proposta que a subestimava,

como se buscasse o autor, e não a obra,

como se mendigasse sobras de poesia,

como se fosse uma nova rica da cultura…

… mas não resistiu a penetrar, àquela altura ,

na porta que inesperadamente se entreabria.

Aonde iria dar, em algum louco?

Em algum misógino, em um fantasma delirante,

em um alucinado amante, ou, pior, um gozador?

Ou um cético contaminado

pelas libações da Internet

(como aquele médico pirado de Floripa,

que exercitou as armas da conquista…

E, depois, simulou a própria morte,

deixando-a perdida entre o real e a fantasia)?

E o que viu a deixou mais intrigada.

Quem era aquele desbocado

que inesperadamente

lhe fazia confidências doloridas?

que usava mensagens reservadas,

não para corte ou cantadas,

ou trepadas virtuais em malcomidas,

mas para confissões de vida?

Aceitou de pronto a proposta

e montando em conjunto a conspirata

criou-se total cumplicidade,

entre os dois tipos mais trocistas da sala.

Primeiro, matricular-se no curso de inglês

onde a mulher preenchia sua vida vazia

dando aulas comedidas.

Depois, insinuar-se junto a ela,

falar dessa nova invenção que

permitia

a quem buscava, encontrar,

ao romântico, romancear,

ao incuravelmente travado

destravar a declaração reprimida.

Durante semanas teceu-se a urdidura.

E Heddy Lammar, que era rocha pura,

e Salitre de Tal, pura armadura,

esqueceram por instantes de suas lanças

e do exercício rotineiro do sarcasmo.

E o chat perguntava, o que deu neles?

De certo tramando a grande sacanagem,

a suprema parceria, o trote clássico e fatal,

entre Heddy Lammar e Salitre de Tal.

A cada noite, depois do batente,

encontrávamo-nos no ICQ para balanço

e aprimoramento da estratégia traçada.

A cada manhã, antes da labuta,

encontrávamo-nos de novo.

Na hora do almoço, mais uma vez.

E aproveitávamos as pausas da grande armação

para confidências, revelações discretas,

plantadas distraidamente na conversa

como intervalos comerciais da grande novela.

E de revelação em revelação

rapidamente penetramos

nos recantos mais secretos de cada um.

Em breve, ela me viu um solitário.

Rapidamente a intuí tão só.

E enquanto as comportas se abriam

jorravam torrentes de dor e de agonia,

de dois náufragos navegando

pela cósmica solidão de um mundo novo.

Pressentindo Heddy Lammar sozinha,

sentindo em mim a solidão latente,

tornamo-nos hóspedes permanentes

de nossa solidão vizinha:

eu abrigando minha solidão na dela,

ela amparando sua solidão na minha

À medida em que os dias caminhavam,

as sombras do passado iam se esvaindo

como nuvens pesadas tocadas

por um vento forte e reparador.

Cada vez menos valia o trato inicial.

Sem perceber, um novo ciclo se iniciava,

agora, eu precisando de Lammar,

ela pedindo Salitre de Tal.

Mas não veio a paz de pronto, e sim o furacão,

desordenado, imprevisível, assustador, intenso.

E Salitre de Sal, que nunca desarmara ,

e Heddy Lammar, que nunca se excedera,

assustaram-se com o salto no escuro,

como quem transpõe o misterioso muro,

que transporta para o onde ainda não há.

Que sentimento era aquele que jamais sentimos,

nos fazendo ansiar, arfantes, loucos,

buscando incessantemente um ao outro

como viciados em drogas e poesia?

Que sentimento aquele, que jamais previmos,

nos fazendo derrubar muralha, paliçada,

elmo, armadura, e almas tão fechadas

pela grande solidão que construímos?

Não sabíamos decifrar a emoção,

que nos fazia vibrar a cada nervo

como as cordas tesas de um bandolim.

Só sabia que eu queria a ela,

e ela sabia que queria a mim.

Aí, houve a necessidade urgente

de um mergulho breve e incisivo

que permitisse decifrar o mais preciso

a árvore, o fruto, a polpa, a semente.

Não valia mais o grande enigma,

antes fascínio, agora, insegurança.

O que valia era a pronta resposta,

a comprovação de que a nossa aposta

em vez de risco, era aventurança.

E doeu, meu Deus, como doeu,

desvestir cada véu, cada escama,

revolver cada lençol na cama,

farejar resquícios de paixão.

Como doeu espreitar a energia,

a vitalidade jovem e sadia

de quem aprendeu sem carregar as culpas

que carregou a minha geração.

Como doeu decifrar as aventuras,

algumas vagas, outras muito duras,

umas antigas, outra invadindo

o início tenso de nossa paixão.

Ao final do processo, eu exaurido,

reflexivo, apaixonado e sábio,

como leitor daqueles alfarrábios

que decifravam a condição humana,

entendi o início e o meio,

compreendi o desfecho e a conclusão.

E foi assim que esse amor tão louco,

atracou-se como o barco ao porto

depois de noite de mil provações.

Hoje, a cada manhã que amanheço

a espreito no leito e me enterneço

com o reencontro, o reinício.

E recomeço.

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Jornalista, colunista e integrante do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo