Esta notícia, publicada no portal do Diário de Teresina seria hilária se não fosse trágica. Três vizinhos compartilhavam um acesso à internet utilizando um roteador WiFi entre eles mas, segundo a notícia, ‘(os) fiscais da Anatel, em uma ‘visita’ à residência do proprietário da linha telefônica, apreenderam computador, modem e roteador lá instalados, lavrando auto de infração e aplicando multa de R$ 3 mil, sob a acusação de que o mesmo estaria prestando serviços de provedor de acesso à internet sem a devida autorização da agência’.
A reportagem foi ouvir o representante local da Anatel, que teria dado a seguinte explicação:
‘O gerente da agência da Anatel no Piauí… falou à reportagem sobre o assunto. De acordo (com ele), dividir internet realmente não é crime desde que se esteja dentro da mesma edificação ou que se tenha uma autorização para prestar o serviço. O Serviço de Comunicação Multimídia – SCM está restrito aos limites de uma mesma edificação ou propriedade móvel ou imóvel, exceto quando envolver o uso de radiofrequência. A legislação do setor estabelece que somente empresas com autorização emitida pela Anatel podem explorar serviços de telecomunicações no país.’
O raciocínio do representante da Anatel estaria correto, não fosse por um mísero detalhe: o acesso à internet não é um serviço de telecomunicações; é um serviço de valor adicionado (SVA), sobre o qual incidem regras diferentes daqueles. Quando uma empresa provedora de acesso à internet (ISP, Internet Service Provider) solicita uma autorização (por exemplo, de SCM) à Anatel mediante pagamento de taxa de R$ 9 mil, ela o faz, não porque irá prover acesso à internet, mas sim, porque necessita implantar uma rede de telecomunicações em ambiente público, por exemplo via rádio, entre sua estação e os assinantes.
Dois equívocos
Talvez seja oportuno recordar o porquê do acesso à internet ser classificado como SVA, e não como um serviço de telecomunicações. Isso ocorre em quase todos os países, com uma notável exceção: Cingapura, que optou por classificar (e regulamentar) o acesso à internet como serviço de telecomunicações.
A internet existe desde a década de 1960, inicialmente como uma rede interligando universidades e centros de pesquisa militares. Mas somente no início da década de 1990 é que ela viria a assumir a forma que possui hoje, como uma rede aberta e amplamente disponível a toda a sociedade. Ocorre que, naquela época, os sistemas de telecomunicações da maior parte dos países – Brasil inclusive – eram formados por empresas estatais e monopolísticas, cujo papel estava sob intenso bombardeio por parte da sociedade. Assim, a abertura do acesso à internet ocorre em um momento de forte resistência da sociedade às empresas estatais de telecomunicações. A sociedade, então, para evitar que o novo serviço ficasse sob controle dessas empresas, optou por categorizá-lo como um serviço de valor adicionado, de modo que qualquer outra empresa pudesse prestá-lo. Foi assim no Brasil e foi assim em quase todos os países.
Portanto, no episódio de Teresina existe um primeiro erro ao classificar o acesso internet como um serviço de telecomunicações. Além disso, embora os sinais possam estar transbordando ‘os limites de uma mesma edificação’, parece oportuno recordar que os roteadores WiFi operam na dita frequência não licenciada, para a qual não é necessário obter autorização da Anatel. Existe um segundo problema, mais sutil. É possível que aquele usuário tenha um contrato com a operadora com cláusulas vedando o repasse do sinal. Assim, a operadora, ao constatar o problema, teria o direito de aplicar as eventuais sanções previstas no contrato, como por exemplo o de cortar o sinal. Mas essa é uma questão de direito comercial, versando sobre contrato particular entre as partes e, portanto, está fora do escopo do papel da agência.
Direito inalienável
A esse tipo de cláusula também cabe um comentário. A operadora, nesse caso, estabeleceu um critério subjetivo, e não objetivo, para a prestação do serviço. Esse critério é subjetivo por ser baseado no número de consumidores, ou seja, no sujeito que consome o serviço. Ele não é um critério objetivo, baseado no objeto da prestação do serviço: o número de megabits consumido no mês. Para a operadora, nesse caso, conta mais o fato de serem três consumidores, embora ela possa ter um outro consumidor que, sozinho, consuma mais megabits do que aqueles três vizinhos juntos.
É interessante observar se isso ocorre no mundo corporativo e, claro, a resposta é negativa. Quando uma operadora brasileira ou uma ISP contrata um acesso junto a uma empresa do ‘núcleo do backbone‘ da internet (tecnicamente conhecido como DFZ, Default-Free Zone), como uma AT&T ou uma Cogent, o contrato entre as partes é baseado exclusivamente no volume de megabits trafegado no mês. A AT&T não pergunta quantos assinantes estão pendurados na rede da operadora brasileira porque essa informação é irrelevante para ela.
Assim, de distorção em distorção, acabamos por criar um monstrengo. O acesso à internet, como parte dos direitos do acesso à informação, é um direito inalienável a todos os cidadãos. A atuação dos poderes públicos deveria ser no sentido de garantir esse direito, de fazer com que a velocidade de conexão constante nos contratos seja cumprida, em vez de repreender e apreender ilegalmente os equipamentos dos cidadãos. Essa notícia não é hilária: é grave, porque pode ser o prenúncio de uma nova era de repressões. Em vez de rádios comunitárias, a onda agora seriam os roteadores comunitários?
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Engenheiro e pesquisador em telecomunicações