Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Andrei Meirelles e Diego Escosteguy

‘Aconteceu o que o governo mais temia. O ex-subchefe de Assuntos Parlamentares da Presidência da República Waldomiro Diniz fez tráfico de influência em 2003, já trabalhando no Palácio do Planalto. Desde a sexta-feira 13, quando ÉPOCA revelou uma fita de vídeo em que Waldomiro aparece cobrando contribuições de campanha e propina do bicheiro Carlos Augusto Ramos, o governo vinha revirando seus armários. Tentando evitar surpresa que pudessem enfraquecer a sua defesa, baseada no seguinte argumento: a fita registra um fato ocorrido em 2002, quando Luiz Inácio Lula da Silva ainda não havia sido eleito e Waldomiro atuava como presidente da Loterj, a estatal que cuida das loterias no Rio de Janeiro. O temor do governo era descobrir alguma ação irregular do ex-assessor quando ele já estava no governo Lula.

Afastado

O Planalto demitiu Waldomiro logo depois da publicação das denúncias. Deprimido, ele se refugiou na casa de parentes

Uma entrevista do próprio Waldomiro a ÉPOCA, dada pouco antes de ele desaparecer na semana passada, mostra que é preciso virar poucas páginas no calendário para verificar o que ele fazia como alto funcionário federal. Em 6 de janeiro do ano passado, recém-instalado no 4º andar do Palácio do Planalto, Waldomiro voltou a se reunir com Carlinhos Cachoeira. A dupla teve um encontro com dois diretores da multinacional Gtech, empresa que discutia a renovação de um contrato de US$ 130 milhões para operar as loterias da Caixa Econômica Federal. ‘Fui convidado para a conversa pelo senhor Carlos Ramos (Carlinhos Cachoeira)’.contou Waldomiro. ‘Ele pediu que eu fosse nessa conversa para tratar com ele de um projeto que ele queria desenvolver’, afirma. As tratativas aconteceram no Hotel Blue Tree Park, a 500 metros do Palácio da Alvorada. Os executivos da Gtech eram o então presidente da empresa, Antônio Carlos Rocha, e o diretor de marketing, Marcelo Rovai. Waldomiro contou a ÉPOCA que esteve novamente com os dois no dia 31 de março, no mesmo hotel, desta vez sem a presença do bicheiro.

Na noite de sexta-feira 13, quando o vídeo de Waldomiro já tinha virado escândalo, o novo presidente da Gtech no Brasil, Fernando Cardoso, convocou Marcelo Rovai, do marketing. Cobrou explicações sobre as conversas com Waldomiro. Pressionado, Rovai confirmou ao chefe o encontro com o ex-assessor e o bicheiro Carlinhos Cachoeira. Relatou que a conversa fora pedida por Waldomiro, que estaria ‘preocupado’ com as brigas entre a Gtech e a Caixa e queria saber detalhes. O relato do executivo da Gtech não bate com o de Waldomiro. Na entrevista, ele diz ter participado do encontro para ajudar o bicheiro a propor parceria à Gtech para explorar loterias em São Paulo.

Ainda no fim de semana, a matriz da empresa nos Estados Unidos decidiu interferir no caso. despachou uma equipe de técnicos e advogados para o Brasil. A tropa de choque isolou Diretores e vasculhou documentos internos para descobrir o que acontecera. A corporação tem motivos para se precaver. Maior multinacional de loterias do planeta, com faturamento anual de US$ 1 bilhão, a Gtech possui contratos com governos de 46 países. O Brasil é o maior deles.

O Ministério Público investiga uma sincronia entre as datas dos encontros reservados e a evolução do contrato entre a Caixa e a Gtech. Em 14 de janeiro, oito dias depois da primeira reunião, a Caixa renovou por três meses o contrato. Depois, em 14 de abril, duas semanas após a conversa de Waldomiro com a Gtech, foi assinada uma renovação, por 25 meses.

De acordo com o MP, Waldomiro teria tido cinco encontros em 2003 com os diretores da Gtech no Hotel Blue Tree. O MP tem as datas de pelo menos três reuniões: 6 de janeiro, 31 de março, e 1º de julho. Registros de diárias guardados pela Gtech confirmam que Antônio Rocha e Marcelo Rovai hospedaram-se no hotel nas datas investigadas. Um alto funcionário da multinacional conta que, ao regressar da reunião de 31 de março, Rovai comentou com diretores da Gtech a cara-de-pau de Waldomiro, que teria pedido um ‘extra’ pela renovação do contrato. Procurado por ÉPOCA, o executivo não quis dar entrevistas. Os registros do hotel ainda revelam que Rocha e Rovai estiveram em Brasília nos dias 13 de fevereiro, 7 de abril e 3 de junho.

Documentos internos da Gtech mostram que a empresa negociou com Carlinhos Cachoeira um acordo para explorar máquinas de jogo em Minas Gerais. As negociações começaram em 17 de dezembro de 2002, com a assinatura de um ‘memorando de entendimento sigiloso’. Foram encerradas em maio de 2003, por ordem da matriz americana da empresa, que alegou ‘irregularidades’ nas minutas contratadas. A Gtech se aproximou de Cachoeira quando a discussão do contrato com a Caixa entrava na fase decisiva e se afastou dele pouco depois de ter conseguido renovar contrato para as loterias federais.

No final do governo Fernando Henrique Cardoso, as relações entre a Caixa e a Gtech chegaram ao ponto máximo de tensão. A cúpula do banco oficial queria romper contrato que entregava à multinacional o processamento das loterias federais. O então vice-presidente de Loterias, Mário Haag, preferia que os computadores do banco coordenassem as operações mais sensíveis dos jogos. Com isso, as atribuições de vídeo gravadas pela segurança da Caixa mostram reuniões tensas entre a direção do banco e representantes da Gtech. Os encontros, ocorridos no fim de outubro e no começo de novembro de 2002, revelam como os diretores da Caixa pretendiam fazer parte do processamento. Já se discutia, então a transição do sistema da Gtech para a Caixa. Os vídeos também registram um encontro entre Mário Haag e diplomatas da Embaixada dos Estados Unidos, quando os americanos pressionam a Caixa para a renovação do contrato.

Autoria

ÉPOCA mostrou que o bicheiro preparou a gravação de uma reunião com Waldomiro Diniz

Pela avaliação dos técnicos, da direção jurídica da instituição e de Mário Haag, o contrato com a Gtech deveria ser renovados por no máximo 12 meses, tempo suficiente para as adaptações necessárias. No governo de transição, as informações foram transmitidas à nova administração petista. ‘Por bom senso, resolvemos prorrogar o contrato por três meses, com anuência do PT, para que o novo governo pudesse decidir como proceder’, conta o então presidente da Caixa, Valderi Albuquerque. ‘Mas repassamos à equipe de transição nossa posição sobre o contrato’.

Cachoeira conversou informalmente com o Ministério Público no domingo 15. Ele disse que a reunião com a Gtech foi marcada por Waldomiro Diniz. Segundo Cachoeira, a pauta era o contrato da Caixa Econômica Federal. Num depoimento formal no dia 19, ele disse que entregava quantias em dinheiro para Armando Dill, assessor de Waldomiro. O destinatário final do dinheiro seria o ex-presidente da Loterj. O bicheiro assumiu ter sido o autor das gravações em que Waldomiro pede propina e contribuições de campanha para candidatos do PT e PSB. Disse que enviou os vídeos aio senador Antero Paes de Barros (PSDB) porque Waldomiro teria se aliado a seus concorrentes pela exploração do mercado de máquinas de jogos loterias on-line.

Waldomiro diz que bicheiro o convidou para encontro com a Gtech’



Karine Rodrigues

‘MPF quer identificar procedência de fitas de vídeo’, copyright O Estado de S. Paulo, 18/02/04

‘As duas fitas de vídeo que mostram o ex-subchefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil Waldomiro Diniz em encontros com o bicheiro Carlos Augusto Ramos o Carlinhos Cachoeira, a quem pede propina e contribuições para campanha eleitorais, só serão usadas como prova na investigação do Ministério Público Federal (MPF) quando a procedência do material for identificada. Gravadas em 2002, as fitas chegaram à Procuradoria Geral da República no dia 4 de fevereiro, pelas mãos do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), mas não se sabe como foram obtidas pelo parlamentar.

‘Por enquanto, as fitas não são prova ‘, declarou hoje uma das três procuradoras da República para quem o procedimento foi distribuído, Andréa Bayão, explicando que o material seria lícito se tivesse sido entregue por um dos interlocutores, ou seja, por Diniz ou Cachoeira. ‘Precisamos ouvi-los para saber se eles confirmam o que está nas gravações e, assim, darmos legitimidade às fitas’, acrescentou a procuradora, esclarecendo que não está invalidando o material, mas tomando uma precaução técnica, para não correr o risco de invalidar todo o processo. ‘É uma questão de jurisprudência’, disse.

O que está baseando o procedimento administrativo em curso no MPF, uma vez que as fitas estão temporariamente descartadas, são os depoimentos prestados no dia 7 de fevereiro, ao Ministério Público Federal em Brasília, dos bicheiros Messias Ribeiro e Carlos Roberto Martins. Ambos relataram suposto envolvimento de Diniz com Cachoeira e com o espanhol Alejandro Ortiz, acusado de participar da máfia italiana. O ex-assessor defenderia os interesses dos bicheiros.

O principal crime investigado pelo MPF é o de lavagem de dinheiro, que é de competência federal. Mas caso surjam indícios de corrupção ativa e passiva e tráfico de influência, entre outros crimes, os fatos serão apurados e, se necessário, encaminhados para o órgão competente.

No material enviado de Brasília para o MPF do Rio de Janeiro, constam, além das duas fitas entregues por Paes de Barros, as cópias do depoimento de Ribeiro e Martins e a cópia de uma carta rogatória enviada há mais de um ano pelo governo italiano ao brasileiro. O documento, cuja cópia foi encaminhada também por Paes de Barros, revela ter encontrado indícios da ligação de empresas e pessoas do Brasil ao tráfico internacional de drogas investigado naquele país. E pede o cumprimento de mandados de busca e apreensão. ‘Essa organização criminosa envolvida em tráfico internacional de drogas lavava dinheiro e reinvestia em várias atividades, entre as quais, a exploração de máquinas eletrônicas de bingo’, detalhou a procuradora da República, Andréa Araújo, sem revelar nomes dos supostos envolvidos no Brasil. O MPF vai procurar saber se a carta rogatória foi cumprida, disse ela.

Demora

Bayão afirmou hoje que o MPF vai pedir explicações à Polícia Federal para saber por qual motivo os mandados de busca e apreensão pedidos pelo MP Federal no Rio não foram executados imediatamente. Expedidos no último sábado, foram cumpridos no Rio de Janeiro e em São Paulo no dia seguinte mas só na segunda em Brasília, e na terça-feira, em Goiânia e Anápolis. ‘Vamos procurar saber qual o efetivo da PF naquele domingo para saber porque eles não seriam suficientes para cumprir os mandados no próprio domingo, como aconteceu no Rio e em São Paulo. A busca e apreensão têm que ser feitas o mais rápido possível’, disse Bayão, informando que foram oito mandados ao todo. Segundo ela, o material apreendido nas buscas em outros Estados ainda não chegou ao Rio, mas devem ser recebidos em uma semana. Já os computadores devem ser analisados no lugar de origem.’



Fernando Rodrigues

‘Desorientação patética’, copyright Folha de S. Paulo, 18/02/04

‘É quase catastrófica a atuação do PT e do governo Lula na atual crise. Há erro de estratégia e tática. O principal e único coordenador político, José Dirceu, está abatido, enfraquecido. Abriu-se um vácuo. Ninguém teve competência nem coragem para preencher.

Um exemplo é uma pérola existente entre os argumentos contra uma CPI para o caso Waldomiro Diniz. Para o governo, não é necessário CPI, porque o fato ocorreu em 2002.

‘Não foi apontada nenhuma irregularidade durante o atual governo’, disse José Dirceu. Ainda não foi possível precisar de qual cabeça saiu esse raciocínio. O fato é que Dirceu o encampou. A indigência do argumento se dá por duas razões.

Primeiro, porque se aparecer algum indício de que Waldomiro Diniz aprontou em 2003 o Planalto estaria obrigado a apoiar uma CPI.

Segundo, a estratégia também é ruim porque os petistas no Congresso decidiram apoiar a CPI de Waldomiro somente se for possível ampliar a investigação para o financiamento de outras campanhas, inclusive as dos anos de FHC no Planalto.

Como assim? Não se deve investigar porque o caso é de 2002, mas, se houver CPI, deve-se voltar até o início da década de 90? Eis aí o pensamento helicoidal petista em estado puro.

Essa desorientação patética, até cínica na sua estrutura, ocorre porque prevalece nos últimos dias mais o pensamento petista, do partido, do que o do Palácio do Planalto. É um paradoxo que o principal atingido pelo escândalo, José Dirceu, seja exatamente o personagem que mais faça falta a Lula nesta crise.

Apesar desse ‘bate cabeças’ dos governistas, ainda é improvável que uma CPI seja instalada. O governo tem um poder enorme de convencimento na base da fisiologia. O processo está em curso. Tem tudo para dar certo. Só fatores imponderáveis e intangíveis podem mudar esse rumo.’



Elio Gaspari

‘Para que serve o poder de Dirceu?’, copyright O Globo, 18/02/04

‘O episódio do doutor Waldomiro Diniz expôs a debilidade de um projeto de poder do comissariado petista. Trata-se de um projeto de poder primitivo, truculento, pobre. Só encontra paralelo em algumas condutas da nobiliarquia alagoana na fase dourada do collorato. Ele foi o primeiro, infelizmente não será o último.

Começando pelo doutor Waldomiro. O moço se aproximou de José Dirceu precisamente no final dos anos 90 durante os quais o comissário moeu o PT do Rio de Janeiro, impondo-lhe os modos de Benedita da Silva e os meios de Anthony Garotinho. Essa visão de mundo aproximou Waldomiro Diniz de José Dirceu. Um dia alguém vai estudar essas semanas e descobrirá que os verdadeiros fundadores do novo PT chamam-se Leonel Brizola, Benedita da Silva e Anthony Garotinho. Foram eles que conseguiram de Lula, Genoino e José Dirceu a carga da cavalaria cossaca contra a esquerda carioca. Mais tarde, em memorável cena de rompimento, Rosinha Matheus desentendeu-se com Dirceu e Garotinho chamou o PT de ‘partido da boquinha’.

Para se compreender a mecânica de poder que gera Waldomiros e toda a família de poderosos cometas de Brasília, vale lembrar uma história atribuída ao príncipe de Talleyrand, o magistral chanceler da França, quando a serviço de Napoleão Bonaparte.

Um negociador estrangeiro queria corrompê-lo e disse-lhe: ‘Dou-lhe 20 mil francos e não conto a ninguém.’ Talleyrand respondeu: ‘Dê-me quarenta mil, e conte a quem quiser.’ A diferença entre Talleyrand e os Waldomiros desta vida está no fato de que o bom príncipe não esperava sigilo de quem o comprava. Os Waldomiros acreditam que o andar de cima, com sua experiência secular, vai contratá-los com cláusulas de confidencialidade.

Quando o PT diz que a extorsão praticada por Waldomiro tem algo a ver com a arrecadação ilegal de fundos de campanha, mente e faz-se de bobo. Há casos de empresas que, na defesa de suas idéias (ou de seus interesses genéricos), dão dinheiro a candidatos sem registros contábeis. É o velho Caixa Dois. O que Waldomiro propunha a Carlinhos Cachoeira era que o bicheiro desse nova redação a um edital para a licitação de um serviço público. Assim como não há seqüestro-de-campanha, não pode haver achaque-de-campanha.

Quando o PT federal diz que agiu prontamente, demitindo o funcionário, faz rir. Faltava só que o mantivesse na função, indo ao Congresso negociar o fim da multa do FGTS. O velho e bom PT carioca mostrou aos comissários o que se fazia no Rio. Havia mais provas de waldomiranças no Planalto do que de água em Marte. É nesse sentido que o projeto de poder do PT federal é débil, pueril no seu deslumbramento.

Quem viu os quinze segundos de fama do doutor Waldomiro no ‘Jornal Nacional’ conheceu seus métodos de negociação. Essas pessoas merecem saber que, além do comissário José Dirceu e de seus secretários-executivos, só quatro funcionários da Casa Civil tinham acesso às senhas capazes de entrar no banco de dados onde os companheiros listam o que se faz, o que se pede e o que se promete à custa da Viúva.

Waldomiro Diniz tinha uma utilidade. Era instrumento do poder de José Dirceu. Feita essa constatação, cabe a seguinte pergunta: para que serve o poder de José Dirceu, além de alimentar as conversas a respeito do tamanho do poder do comissário José Dirceu?’