Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bernardo Ajzenberg

‘Seria um erro questionar a primazia institucional e a prioridade jornalística de um caso como o do ex-assessor do Planalto Waldomiro Diniz, suas implicações e consequências.

Ao menos nas últimas semanas, é esse o tema a exigir e merecer mais espaço e maior investimento na apuração noticiosa.

A morte de quase sessenta animais por envenenamento ao longo de um mês no zoológico de São Paulo lançou para a mídia, porém, um outro desafio.

Pois, se repórteres de política estão -infelizmente- habituados a investigar corrupção e jogo de poder, conhecendo disso ao menos o início do ‘caminho das pedras’, o mesmo não ocorre ante episódios inusitados como a morte em série de porcos-espinhos, dromedários, elefantes, chimpanzés e outras espécies.

Uma leitura da cobertura da mídia de 6/2, quando as TVs divulgaram pela primeira vez a matança, até a última sexta revela que ela se dedicou ao assunto quase cotidianamente. No entanto, com raríssimas exceções, o noticiário limitou-se a reproduzir informações ou declarações de fontes oficiais ou de especialistas: polícia, Ministério Público, direção do zôo, toxicologistas, biólogos, políticos, autoridades, veterinários, funcionários, visitantes, peritos.

Sem esse conjunto de referências, é óbvio, não havia como dar conta minimamente dos fatos nem das hipóteses aventadas para chegar à raiz do ‘mistério’. Mas isso é o elementar. Onde esteve a investigação jornalística independente, reveladora, capaz de antecipar fatos ou tendências, expor contradições, trazer elementos novos?

Passado mais de um mês desde as primeiras mortes, ela não apareceu. Daí a indesejável homogeneidade, uma sensação de quase indiferenciação entre as notícias publicadas pelos diversos veículos de comunicação sobre o andamento do caso.

Registre-se que, na sexta, citando um diretor do parque, a Folha revelou algo importante, uma pista diferente: a grande quantidade (40) de porcos-espinhos no grupo de bichos envenenados poderia estar relacionada a um leilão de animais marcado para acontecer no próximo mês, sendo fruto, assim, da ação deliberada de um grupo com interesses específicos em prejudicar o zoológico. A conferir.

No mais, como costuma ocorrer em casos policiais complexos, vemo-nos perdidos, atarantados, comendo notícias da mão da polícia, de promotores e de especialistas, sem que se evidencie nenhum moto próprio de investigação por parte da mídia, ainda que dentro de seus limites.

Tal comportamento, quase passivo, não condiz com um princípio básico do jornalismo: notícia decisiva não cai do céu; redunda, ao contrário, de abrir caminhos e avançar por eles até tocar na versão mais próxima possível da verdade.

Se isso vale de um modo geral, que dirá num caso tão misterioso como o do zôo…’

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‘Salve a cachaça’, copyright Folha de S. Paulo, 29/2/04

‘Na última quinta-feira, a Folha Equilíbrio publicou uma reportagem de duas páginas que pede reflexão. Sob o título ‘Cachaça ganha status de bebida para ser degustada’, o texto revelava como a ação de produtores, exportadores e consumidores desse produto, além do governo, tem alterado a imagem da bebida nos últimos anos, elevando-a de mercadoria popular para algo, digamos, mais refinado.

A reportagem incluía uma receita com uso de pinga, coordenadas para contatar entidades relacionadas ao seu mercado e uma letra de música popular que faz uma ode à cachaça. O que merece reflexão, aqui, é o tom excessivamente promocional do conjunto, que o aproxima mais da publicidade subliminar do que do jornalismo.

No texto, a bebida é sucessivamente tratada como ‘a brasileiríssima cachaça’, ‘produto com ótimo potencial para exportação’, ‘a branquinha’, ‘o aperitivo preferido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva’, ‘produto brasileiro acima de qualquer suspeita e com um lastro histórico forte’. Veja o quadro ao lado.

Como escrevi na crítica interna, nada disso é necessariamente inverdade, mas o conjunto de classificações soa como algo quase propagandístico.

Acrescentei, como exemplo: ‘Não nos é oferecida nenhuma informação técnica sobre o teor alcoólico dessa bebida, suas possíveis desvantagens em relação a outros destilados, quando se está bebendo em excesso ou não’.

Faltou, enfim, uma abordagem jornalística crítica, que, sem deixar de mostrar a real tendência de glamourização da cachaça, fosse capaz de se distanciar da campanha agressiva de marketing que esse setor tem feito (e que, claro, é de seu absoluto direito fazer), com expressivo apoio do governo, para ganhar espaço no mercado, no Brasil e no exterior.

Fica evidente, aqui, como o jornal, mesmo com todo o seu real aparato de defesa contra manipulações, torna-se, vez por outra, vulnerável a elas.’