Converteu-se, há tempos, o canal Bluebus em inspirada fonte de informação crítica. O texto ‘TV Globo falsifica o áudio do futebol para agradar corinthianos‘ (12/6), entretanto, embarca na onda tola de anticorinthianismo que varre a mídia esportiva. O fenômeno, aliás, caminha paralelamente, nos tempos e nos espaços, ao antipetismo e ao antilulismo. Talvez, e só talvez, porque são essas algumas das referências simbólicas dos outsiders, dos excluídos, dos mais pobres, dos mais populares, dos maloqueiros, dos sofredores e dos que ousaram desafiar o status quo.
O Corinthians, ao contrário de outros grandes clubes, nasceu literalmente na rua (à luz de um lampião), no chão mais simples da sociedade, no bairro mais globalizado do Brasil, o Bom Retiro, reduto dos entrantes das mais diversas nacionalidades. Seus fundadores eram carroceiros, pequenos comerciantes, mascates, funcionários públicos e operários, vários deles militantes do sindicalismo anarquista do início do século. Foi a agremiação que desafiou, sadiamente, os esportistas engomados da liga futebolística, todos membros da aristocracia cafeeira ou da indústria emergente.
Anistia e passeata contra guerra
Não é por acaso, portanto, que o Timão reúne tanta gente – de louros cabelos, negra pele e olhos puxados. Com sua mística, herdada do brilho do cometa Halley, que pairou delicadamente sobre a urbe em 1910, identificou-se Alcântara Machado, o moço letrado que talentosamente redigiu a crônica da cidade em movimento, miscigenada e viva. E, também, Adoniran Barbosa, nosso menestrel ítalo-afro-paulistano. Tempos depois, o catarinense Dom Paulo Evaristo Arns, destemido defensor da democracia e dos direitos humanos. Na torcida fiel desta agremiação, popular e dinâmica, inspiram-se os metalúrgicos do ABC, na década de 1970. Em Vila Euclides, quem foge da assembléia para saber do resultado, pelo radinho de pilha, é o barbudo Luiz Inácio, identificado com essa massa e com seu sofrimento épico.
Não é à toa que o movimento Diretas-Já tem nos corinthianos Sócrates, Wladimir e Casagrande apoiadores de primeira e última hora, eles próprios experimentadores de um sistema autogestionário esportivo único no mundo, denominado ‘Democracia Corinthiana’. E esse processo ímpar não é fruto do acaso, mas de uma tradição de compartilhamento de poderes, presente no DNA bom-retiriano do Corinthians.
A imprensa, de esquerda ou de direita, esta sim, falsifica a história ao lançar nuvens sobre esse patrimônio de vivência e saberes. Para esse olhar preconceituoso, de esquerda ou de direita, calcado muitas vezes numa infantil inveja clubística, vale mais o fait-divers maledicente que o tesouro da resistência popular, brasileiramente formulado em festa e paixão. O Corinthians é lembrado pelo cartola corrupto que dele se apossou até 2007, mas não pela corajosa campanha movida pela Gaviões da Fiel, nos anos 1970, em favor da Anistia Ampla Geral e Irrestrita. Lembra-se do tal pênalti no Tinga, mas não há registro sobre as bandeiras corinthianas na passeata paulistana contra a II Guerra do Iraque, no início desta década.
Dois mil heróicos cidadãos
A Globo, com todos os seus graves defeitos e vícios, percebe a natureza das demandas subjetivas de seus telespectadores. Ora, são 25 milhões de corinthianos pelo Brasil. E que tipo de estímulo sensorial estariam procurando numa final de campeonato? Do ponto de vista intersemiótico da questão, se existe recorte de imagem, por que não pode existir recorte de som? Alternar o punctum do áudio não consiste em ‘agradar’, mas em informar quem, na oportunidade do espetáculo, é minoria dentro e maioria fora. Se preciso, que se convoque o sr. Roland Barthes ao debate.
Até os seres minerais sabem que, no Recife, havia mais torcedores do Leão do que do Corinthians. Evidente, óbvio e ululante. No entanto, o que impede que os milhões de torcedores de sofá selecionem, na edição do interesse, a manifestação que lhes é mais pertinente? Havia ali cerca de dois mil heróicos cidadãos, que atravessaram o país para acompanhar a tropa sem elite que mais os representa. Por que negar-lhes a voz? Apenas por que eram minoria no estádio? Ou será que a mensagem dos visitantes valia menos, em forma e conteúdo, do que a dos donos da casa?
Sofredor, graças da Deus
Jornalismo é, sobretudo, edição. E os bons editores a constroem por meio de um exercício dialético permanente, de abandono no outro, no receptor. Quem não sabe disso está condenado a ‘descomunicar-se’.
Lamenta-se que certas vozes, identificadas com a busca da isenção e do discernimento, acabem por reproduzir culturalmente, ingenuamente, a doxa colonial-quatrocentona, preocupada em preservar-se na arrogância e desqualificar o que emerge das massas. Não é à toa que o corinthiano é tido como ‘gambá’, pois nele se vê o pobre que ‘fede’, ou o ‘vira-lata’, pois é o homem miscigenado, sem pedigree. Não por acaso, O Corinthiano, protagonizado pelo ítalo-brasileiro Amácio Mazzaropi, exibia há décadas esse ethos do teimoso combatente, o ‘de fora’ que exige seu lugar e seu direito.
Se a nota é a descomunicação, e nessa entropia apostam até os justos, prospera a preocupação acima da confiança. E vale, mais uma vez, convocar a identidade resistente e resiliente do povo alvinegro de São Jorge: ‘Maloqueiro e sofredor, graças a Deus.’
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Jornalista