Finalmente, a ONU se pronunciou. A rede é, sempre foi e deve continuar sendo livre. E todos têm de ter o direito de se utilizar dela igualmente, sem privilégios econômicos. Na verdade, com o devido respeito e cá entre nós, pista pedagiada em que usuário que paga mais pode dirigir com maior velocidade é um absurdo. Fila VIP em que os que chegam depois entram primeiro na casa noturna é um absurdo. A cortininha que separa a classe econômica da primeira classe, e que impede os “comuns” de verem os “especiais”, é um absurdo. Tudo o que coloca pessoas que estão em situação de igualdade em uma artificial desigualdade, é absurdo.
A pista pedagiada rápida é um jeito de dizer que carros em igual situação de trânsito podem ter tratamentos diferentes. A fila VIP significa que pessoas que se encontram igualmente em uma espera, podem ter tratamentos diferentes (e, pior, pessoas que chegaram antes, entram depois). A cortininha de separação é a concessão de um privilégio de não ser visto dentro de um avião que, se cair, mata todos igualzinho. Mas há que se entender que o dinheiro compra distinções e ser igual perante a lei, como muitos sabem, é ser desigual, conforme sua desigualdade. E temos que aturar: numa sociedade capitalista, quem tem mais dinheiro, tem mais privilégios, numa meritocracia ditada pelo dinheiro.
Entendo que há diferenças sutis entre a imposição de igualdade em situação de igualdade e a opção pela desigualdade numa sociedade desigual em sua essência.
Acesso e velocidade
Explico.
Se você tem muito dinheiro, você pode ter um carro melhor, um celular melhor, uma cueca de marca. Mas numa ilha deserta, após um naufrágio, todos somos iguais, independentemente da cueca. Com câncer em estágio avançado, todos somos iguais, independentemente do carro. Pelados, numa sauna, todos estamos numa situação de igual fragilidade e exposição, independentemente do celular. Há situações em que o dinheiro não pode e não será relevante.
Na rede há a mesma concepção de igualdade. Somos todos números IPs e somos todos usuários com idêntica capacidade de navegação. Ainda que paguemos por conexões mais velozes (e não há mesmo como reduzir velocidade hoje em dia), o acesso às páginas e à velocidade com que as informações navegam na rede deve ser tratada da mesma forma. Não é porque você tem um iPad que o livro que você baixa do site da Apple deve desrespeitar a lógica do tráfego de informações.
O dinheiro serve para comprar o equipamento melhor, a tela maior e a conexão mais veloz. Mas uma vez dentro da rede, a única coisa que ele pode fazer é dar acesso a conteúdo que, por sua vez, tem velocidade única. Meu blog e seu blog estão igualmente na rede para acesso. Não é porque o seu blog é mais famoso, mais acessado, mais requisitado, que haverá privilégio para acessar o seu em detrimento do meu. Nem privilégio quanto ao acesso, nem quanto à velocidade.
O fim da democracia idealizada na rede
Imagine se, no futuro, precisássemos baixar um driver para a impressora X. Um programa gratuito. Imaginemos agora que esse driver pudesse ser baixado no site da própria impressora ou na Amazon. Imaginemos que na Amazon (cheia de patrocinadores) o driver pudesse ser baixado em 3 minutos e no site da empresa, sem patrocinadores, em 30 minutos. E imagine que na Amazon só se poderia baixar rapidamente porque os tais patrocinadores pagassem alto para que ali as transmissões fossem melhores, mais confiáveis e mais velozes. Que tal seria?
O mais curioso é que grande parte das pessoas com as quais conversamos acha isso bom e estariam propensas a aceitar as tais publicidades porque creem-se imunes a tais ataques e acreditam haver grandes vantagens nisso. Afinal, tempo é dinheiro!
Mas pense comigo.
Você se sente a vontade vendo que o preço do combustível está uniformizado nos postos de sua cidade? Você não enjoa de ver outra vez o Francisco Cuoco e a Regina Duarte na novela? Ou o Eymael no horário eleitoral gratuito? Com o devido respeito à comparação, é isso que a queda da neutralidade da rede geraria: domínio, abuso, monopólio, mesmice, limites… Seria o fim da democracia idealizada na rede. E o fim, dentre outras coisas, da possibilidade de todos serem potencialmente alguém.
Domingo à tarde sem TV a cabo
Sejamos honestos conosco mesmos: você conhece alguém que já ganhou na loteria? Conhece alguém que já acertou mais dezenas naquele título de capitalização? Conhece alguém que já ganhou alguma coisa grande e que mudou de vida por isso? Mas a rede fez isso com várias pessoas. Veja o @rafinhabastos que de anônimo virou o homem mais perseguido do Twitter…
A rede dá chances para o escritor de fundo de quintal ser publicado. Para o ator de 5ª categoria ser visto. Para o tocador de ocarina mostrar sua diferença. E também dá chance para o super escritor famoso se divulgar ainda mais, se popularizar ao limite. Dá chance ao ator de 1ª categoria ampliar seu espectro de atuação. E para o pianista clássico manter a beleza do tradicional viva.
Se cair a neutralidade da rede, estaremos de volta à época do padrinho, do editor, do produtor. Seremos guiados e recentralizados, numa espécie de concorrência desleal em que a plutocracia se auto-alimenta e sustenta. Só serão relevantes para a mídia eletrônica aqueles que os responsáveis pelos sites especiais disserem que são.
E preparem-se para ver programas como “se vira nos 30”, “videocassetadas” e “dança dos famosos” online. Todo o dia parecerá um chuvoso domingo à tarde sem TV a cabo…
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[Spencer Toth Sydow é advogado e professor, mestre pela USP e especialista em Direito Eletrônico]