…entre o sim e o não é só um sopro, entre o bom e o mau apenas um pensamento, entre a vida e a morte só um leve sacudir de panos… (Lya Luft, O silêncio dos amantes, 2008)
Pode existir cultura na internet? Eu responderia com outra pergunta: por que não? Mas essa resposta não diz quase nada. Vejamos os dois termos. Todo mundo sabe o que é internet, mas a gente sente falta de conceituar cultura. Na concepção corrente, cultura é ter muita ‘informação’. Entre os preconceitos correntes, ser culto é ser erudito, mas isso não é um elogio, é dito com reprovação pelo que pode parecer, e às vezes é, afetação (os gregos diziam malakías).
Entusiastas da internet, como Pierre Lévy no livro Cibercultura, imaginam que a cibercultura é uma conquista universal com ‘todas as ressonâncias possíveis de serem encontradas com a filosofia das luzes, uma vez que possui uma relação profunda com a ideia de humanidade’ (Lévy, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu Costa. 2ª ed. São Paulo: Ed. 34, 2000, p.119). Esse ponto de vista me agrada, pela desconfiança visceral de todo tipo de esnobismo de ‘críticos da cultura’. Enfrentar o poder dos donos da cultura é uma libertação, também porque muitos deles defendem esse pequeno terreno com unhas e dentes sem autorização de ninguém, a não ser de si mesmos, para decretar quem é culto e quem é bárbaro. Nesse sentido o ciberespaço é um espaço de liberdade.
‘Arcas eternamente à deriva’
Os donos do bom gosto, ‘os avalistas da qualidade, os intermediários obrigatórios, os porta-vozes veem suas posições ameaçadas pelo estabelecimento de relações cada vez mais diretas entre produtores e usuários da informação’ (p. 231), e por isso tendem a demonizar a internet, diz Pierre Lévy, e a primeira parte do diagnóstico é correta. O diálogo pró ou contra a internet é um diálogo de surdos. Em face do desconhecido somos entusiastas por curiosidade nata (autodidatas tecnológicos) ou desistimos por medo da tecnologia, que não é coisa do nosso tempo, preferimos o velho e bom papel, mais sólido, mais seguro, mais confiável, familiar. Outra explicação do fenômeno é que os debates envolvem atores comprometidos com a mídia. Uma espécie de fobia à internet vem do fato de que essa tecnologia, que para nós pode ser abraçada com entusiasmo ou deixada de lado com indiferença, não é indiferente à profissão dos jornalistas, que sofrem profunda crise de identidade, precisam redefinir ‘o que é’ jornalismo. Relacionar-se de algum modo com a internet torna-se questão de sobrevivência. Para o público geral, porém, o debate interessa não tanto por sobrevivência, mas quase por isso: precisamos aprender a viver com a tecnologia do nosso tempo, precisamos saber de que modo se transformou com ela o espaço público.
A deficiência do livro de Lévy vem do fato de não conceituar claramente cultura. Às vezes associa a palavra à inteligência, mas em geral à noção corrente de informação. Melhor é a descrição do ‘espaço’ que essa cultura ocupa: o ciberespaço, descrito segundo a metáfora bíblica do Dilúvio. Recorto algumas citações:
‘E Jeová fechou a porta por fora’ (Gênesis, 7, 16). A arca foi fechada. Ela simboliza a totalidade reconstituída. Quando o universo está desenfreado, o microcosmo organizado reflete a ordem de um macrocosmo que está por vir (p.14).
‘O segundo dilúvio não terá fim. Não há nenhum fundo sólido sob o oceano das informações. Devemos aceitá-lo como nossa condição. Temos que ensinar nossos filhos a nadar, a flutuar, talvez a navegar’.
‘Na aurora do dilúvio informacional, talvez uma meditação sobre o dilúvio bíblico possa nos ajudar a compreender melhor os novos tempos. Onde está Noé? O que colocar na arca? No meio do caos, Noé construiu um pequeno mundo bem organizado. […] Quando tudo vai por água abaixo, ele está preocupado em transmitir. Apesar do salve-se quem puder geral, recolhe pensando no futuro’.
‘Quando Noé, ou seja, cada um de nós, olha através da escotilha de sua arca, vê outras arcas, a perder de vista, no oceano agitado da comunicação digital. E cada uma dessas arcas contém uma seleção diferente. Cada uma quer preservar a diversidade. Cada uma quer transmitir. Estas arcas estarão eternamente à deriva na superfície das águas’ (p. 15).
Entusiasta da utopia tecnológica
A metáfora do dilúvio abre uma boa discussão. Chama atenção uma diferença. O dilúvio bíblico acabava com o caos para recriar um mundo ordenado e justo; o dilúvio informacional parece que cria o caos: ‘A cibercultura reúne de forma caótica todas as heresias. Mistura os cidadãos com os bárbaros, os pretensos ignorantes e os sábios. […] Suas fronteiras são imprecisas, móveis e provisórias’ (p. 238).
Os Noés da rede mundial querem transmitir… informações. O dilúvio é um dilúvio pelo excesso de informações. Mas o que essas informações informam?
Cada arca é uma ‘seleção’. Cultura é sobretudo seleção: escolhemos os livros de nossa biblioteca, aqui é válido o dito: dize-me com quem andas…A cultura é um mundo fechado que paradoxalmente está sempre aberto. Como nos versos de Dickinson, ‘a alma escolhe sua própria sociedade/E fecha a porta’ (The soul selects her own society/ and shuts the door). Mas o oceano em que navegam essas arcas é ainda o caos.
É inegável que esse dilúvio transformou o espaço público. A mídia escrita em papel é mediação, interpõe entre quem fala e quem escuta um meio relativamente impessoal: a instituição do jornal (ou da televisão). Todas as mediações são espaços de poder, segundo lição de Karl Marx. Todo poder é alienante. O ciberespaço rompe com todas as mediações na comunicação social. Teríamos chegado enfim ao ideal de Marx sem precisar do comunismo? Como entusiasta da utopia tecnológica, Pierre Lévy percebe algo parecido com isso quando observa no fenômeno novo uma ‘impressionante realização do objetivo marxista de apropriação dos meios de produção pelos próprios produtores’ (p.245).
Internet muda nossa relação com o Tempo
Mas percebemos novamente a deficiência do argumento, que não oferece um conceito de cultura, ao perguntarmos: que produtos esses novos produtores-associados oferecem? Em que mercado? Sem responder a essa pergunta não teremos noção para julgar se isso é um progresso ou apenas caos.
Que tem de bom essa ‘imediatez’ da internet para as relações humanas e sociais? Se lembrarmos que a abolição da mediação por excelência da sociedade moderna, o mercado, produziu um mundo sem liberdade nenhuma, não haverá muito que aplaudir. Porque sobre a abolição-da-abolição-do-mercado, ressuscita a descrição de Hegel de que a modernidade distingue-se precisamente pela existência de ‘mediações’ entre as pessoas, como são o dinheiro, a economia, as instituições, a imprensa, enfim o que se chama de ‘sociedade civil’. E mediações também podem ser compreendidas em termos freudianos como sublimações da violência eternamente presente em potência no subsolo da civilização. As mediações não eliminam a violência dos contatos diretos, mas sublimam a violência, e na ausência dessas mediações não admira que o mundo da rede mundial de computadores seja justa e fielmente descrito como o ‘estado de natureza’ concebido pelos filósofos da Ilustração: a gente torna-se fauna.
Para Pierre Lévy seria errado demonizar a Web como espaço frio e desumano: ‘longe de serem frias, as relações online não excluem as emoções fortes’. Mas sua descrição do mundo online chega à raia do absurdo de ingenuidade ao somar a isso que: ‘Além disso, nem a responsabilidade individual nem a opinião pública e seu julgamento desaparecem no ciberespaço’ (p. 128).
A web é livre como a selva porque a responsabilidade moral é difusa, não encontra um ethos objetivado, nem mesmo um ethos mínimo. Parece que aí vale tudo e que ninguém é responsável por nada. A web não é mais humana porque expõe afetos mais intensos, ela apenas não permite que alguns afetos sejam elevados à condição de emoções, que são emoções porque permitem algum distanciamento crítico em relação ao objeto do afeto. Seria exagero dizer que a web vive apenas de pulsões primárias, impulsos agressivos e extrapolações narcísicas, mas não é exagero dizer que tudo isso é normal nesse espaço. E o meio torna-se perigosamente agressivo porque capta fragmentos de vida e fragmentos de afetos, e os congela não só no espaço, mas no tempo. A mídia acompanha a temporalidade da vida social: o jornal de papel que hoje trouxe informações sofridas, amanhã já estará embrulhando peixe, e a dor de algum modo passa, fica esquecida. A internet muda nossa relação com o Tempo, não só com o Espaço.
Produtores associados ou diletantes?
A nova relação com o Espaço é mais positiva que a nova relação com o Tempo. A Terra diminuiu. Até o final do século passado, eu tinha vontade de voltar a Nova York, para caminhar pela cidade, mas também para comprar livros… que hoje chegam entregues pelo correio. Esse encurtamento do mundo atenua também uma deficiência coletiva de auto-estima dos que vivermos na periferia do (grande) mundo, que não é só Nova York: o Rio de Janeiro é para os que não vivemos lá também um ‘microcosmo representativo’. Mas a relação com o Tempo é diferente. O Tempo da internet é eternamente-presente e seu passado parece indestrutível. As informações sofridas da internet nunca embrulharão peixe. A temporalidade da rede é parecida com a temporalidade do inconsciente, e só isso já faz o mundo todo da internet ficar parecido com o subterrâneo do inconsciente: fascinante e ao mesmo tempo assustador, pois a qualquer momento pode emergir desse subterrâneo algum retorno violento.
A realização da utopia de Marx dá o que pensar. Houve um tempo em que os discursos culturais de esquerda queriam fundir a alta cultura e a cultura de massas. Representativo dessa utopia é o livro de David Riesman, A multidão solitária, que é ótimo, mas no final meio ingênuo. E cita, a propósito, nesse final justamente a profecia de Marx de todo mundo poder ser crítico literário nas horas de folga.
Hoje essa utopia não soa bem, porque se corrermos o risco de que o mundo todo seja o universo fechado da internet com seus produtos e informações, parece que perdemos a cultura, e não que a ganhamos. Porque a cultura está associada à transcendência. O ‘espírito absoluto’ não nasce no solo do subterrâneo do ciberespaço, ele precisa vir de outro lugar. Já não é mais nem mesmo democrática a utopia de igualar alta cultura e cultura de massas, e não por preconceitos elitistas. Simplesmente porque os objetos da cultura de massas nos agradam, distraem e divertem, mas não proporcionam elevação para outro mundo misterioso, transcendente. Não se precisa ser elitista para separar os dois mundos, mas precisa-se de democratismo, e não democracia, para uni-los. Nem todos tem ouvido musical (gosto para a música). Gosto de música pop, e não sou muito musical, por isso posso registrar uma diferença sobre música sem arrogância ou esnobismo: a música pop a gente escuta enquanto faz algo. Enquanto dirige, enquanto cozinha, enquanto conversa: ela integra o ambiente, mas não transporta ninguém para nenhum outro lugar. A música na sala de concertos tem ‘aura’ não só porque a gente se veste um pouquinho melhor, mas porque desliga o celular e se concentra apenas na orquestra. E aí se transporta para o outro mundo. Mas deveria ser proibido pelo código de trânsito escutar a Nona Sinfonia dirigindo, porque ao transportar-se para outro mundo o motorista torna-se perigoso.
Ainda comunista, Leandro Konder crê na utopia de Marx, e registra em suas memórias: ‘… em 1989, tive, não tanto discussões, mas conversas […] sobre as complicações que surgiam no caminho dos marxistas. Lembro-me de que, em determinado momento, um dos teólogos protestantes […] perguntou se o poder do homem livre de se tornar, no comunismo, tal como Marx o concebia (na Ideologia Alemã), um pintor de manhã, um pastor ao meio-dia, um filósofo à tarde, um músico à noite, não era uma utopia? Respondi que sim, era utopia’ (Konder, Leandro. Memórias de um intelectual comunista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 147). O clube dos comunistas, na história de Konder, tornou-se um nicho de saudade, descrito de modo bem-humorado na expressão com que o grupo que se reúne no Rio se autodenomina: são os comuníadas, herdeiros do comunismo e dos Lusíadas (Konder, 2008, p. 252). Mas os encontros dos amigos do comunismo de ontem já não tem pretensões à imposição de uma cultura e nem de uma política. É significativo que são ‘almoços’: ‘Os participantes dos almoços, entretanto, por uma espécie de pacto implícito, evitaram discutir sobre as divergências, divertiram-se com os encontros, derramaram afeto uns sobre os outros’ (Konder, 2008, p. 252). Como veremos adiante, esse grupos atualizam o segundo conceito de cultura, o do discurso à volta da mesa, a que não pode faltar bom vinho.
O primeiro conceito: alta cultura
A utopia de Marx transposta para um ‘universo de produtores-associados-de-cultura’ não é ruim por ser impossível. Hoje podemos ser carregadores de sacas de cimento o dia todo, e poetas à noite. E podemos publicar nossos sonetos sem pagar nada a ninguém, e podemos encontrar uma multidão de seguidores que gostam de nossos sonetos. Mas isso só pode ser cultura se definirmos outra dimensão de cultura, antropológica, que não concorre com o cânone da alta cultura, pois, do contrário, o mundo, reduzido ao império dos diletantes, ficaria muito chato e empobrecido, sem transcendência. Mas já estou empregando diferentes conceitos de cultura. Para avançar na compreensão, é preciso qualificar um pouco o conceito de cultura, que não é sinônimo de informação e nem de erudição. Confio na teoria de modernidade de Agnes Heller, que elabora três conceitos de cultura e seus paradoxos (Heller, Agnes. A theory of modernity. Blackwell, 1999, p. 116-140). Não tenho espaço para desenvolver o tema (principal no livro) dos paradoxos, mas é possível descrever rapidamente os três conceitos.
O primeiro conceito de cultura é o de ‘alta cultura’. Há muita confusão e preconceito em torno dele. A confusão nasce do fato de que ele ‘inclui as criações do espírito, das mãos e da imaginação que são coletivamente chamadas por Hegel de Espírito Absoluto: são obras representativas de arte, teologia, filosofia e – no século 19 – também de ciência. O termo ‘alta’ indica um espaço bem acima da superfície da vida e do pensamento cotidianos’. (Heller, 1999, p. 116). Mas dificilmente compreenderíamos que uma sociedade tem cultura porque alguns de seus cidadãos criaram grandes obras. ‘Hannah Arendt foi muito perspicaz ao dizer que os gregos não tinham ‘cultura’’. Porque em Atenas ‘poiesis e techné pertenciam à vida, integravam as vidas política e religiosa, não uma inexistente instância chamada arte ou cultura’ (Heller, 1999, p. 117). Quem tinha cultura eram os romanos, que cultivavam o cânone grego. Aprender grego, apreciar a arte, compreender a filosofia dos gregos, distinguia um romano culto dos outros, bárbaros, sem cultura. Arendt tem razão em dizer que cultura não é só criação, mas cuidado, preservação dos cânones, das grandes obras criadas pelos outros. Depois dos gregos, uma sociedade cria alta cultura não porque orgulhosamente se acha superior, mas pelo contrário. A história, sublime e trágica, encerrada, mas sempre espetacular, da cultura germânica começa com Winckelmann e os filósofos e poetas que se julgavam ‘bárbaros’ frente àqueles criadores geniais da Grécia. Por ser história terminada, admite ser contada segundo esse fio condutor, como faz a filósofa, em conciso texto chamado ‘Os deuses da Grécia: Os alemães e os gregos’ (Heller, Agnes. ‘The Gods of Greece: Germans and the Greeks’. Thesis Eleven, 2008; 93; 52).
A alta cultura é canônica, e universal no sentido normativo de universalidade. As grandes obras do espírito falam a todas as pessoas, não se limitam à experiência local. As obras que não são tão grandes contribuem para nossa sensação de pertencimento, formam o conjunto das literaturas nacionais, mas são culturas da diferença, não universais. As grandes obras são eternas porque são hermeneuticamente inexauríveis. Cada interpretação retira algo delas e soma algo novo, e a obra permanece misteriosa, pronta para uma nova interpretação.
O segundo conceito: o discurso cultural
Uma tragédia que nasce da ênfase na Criação, natural no primeiro conceito, é a nostalgia de grandes momentos criativos e projeção de possíveis renascimentos. A história paradigmática dessa tragédia, com toques de platonismo em sua aventura siracusana, talvez seja a filosofia de Georg Lukács, que abraçou o comunismo como (re)nascimento de um mundo novo, criador. Dizia o filósofo: ‘nenhuma cultura nova da Renascença podia nascer da velha e decadente Roma. Foram necessários os Visigodos para aparecerem Giotto e Masaccio’. Mas o que a sociedade soviética criou de novo foi o ‘Bestiarium’, escreve Fehér: ‘Os Visigodos renasceram, mas os novos Giottos e Masaccios não’ (Fehér, Ferenc. ‘In the Bestiarium – A contribution to the cultural anthropology of `Real Socialism´’ in Heller, Agnes; Fehér, Ferenc. Eastern Left, Western Left – Totalitarianism, Freedom and Democracy. Atlantic Highlands, NJ: Humanities Press International, 1987, p. 278). Com isso termina de uma vez por todas essa aristocrática nostalgia. Porque não é possível apostar num novo bestiarium para talvez aparecerem novos gênios comparáveis a Shakespeare. Já não existe criação suficiente no acervo universal? Essa pergunta torna um pouco frívola a preocupação de alguns críticos da cultura com a situação de penúria ou falta de criatividade das artes em nosso tempo. Esperam por algo no futuro que não encontraram no passado, mas talvez não tenham sequer procurado.
Existe um segundo sentido em que as pessoas dizem possuir cultura, que privilegia a recepção e não a criação. É a apreciação das grandes obras sem necessidade de ser especialista em arte ou literatura. Esse segundo conceito nasceu na Ilustração, depois fez carreira no salon burguês. Essa origem burguesa da conversa misturada sobre temas de cultura, que frequentemente enveredava também por assuntos de política, é o nascedouro do conceito moderno de espaço público, como demonstrou Habermas em sua dissertação de habilitação universitária ‘A transformação estrutural do espaço público’.
Em capítulo no livro Uma filosofia da história em fragmentos, de 1993, chamado ‘Cultura, ou Convite para almoçar com Immanuel Kant’, a filósofa define o segundo conceito como a nobre Tischgesellschaft – a sociedade da boa mesa onde a conversa corre despretensiosa, onde são livres as remissões à alta cultura, com a marca essencial de que são desnecessárias notas de rodapé, porque todos se conhecem e conhecem os mesmos textos. Onde uma referência conceitual parece lembrar demais a cultura técnica, o código ético da nobre Tischgesellschaft acode-nos com uma boa piada, humor e tato, que não são opostos excludentes da seriedade. Exibicionismos estão banidos desta mesa, assim como tons arrogantes. O componente biográfico que serve de referência a esse conceito é a mesa de almoço de Immanuel Kant. Aqui o ‘tom’ da conversa é tão importante quanto o conteúdo. ‘Kant atribuía enorme importância ao tom e à entonação, o que era para ele um dos gestos mais fundamentais da comunicação humana.’ Kant não era homem de ‘isso ou aquilo’, ele queria o contrato e a mesa:
‘A Mesa imaginária é o contraponto do Contrato. Era basicamente em torno de mesas simbólicas que Sócrates conduzia seus diálogos. Jesus de Nazaré tinha predileção pela mesa (…) O contrato, por outro lado, é a associação de pessoas soltas. (…) O contratante pode ser obrigado a obedecer. Vínculos bem diferentes formam-se em volta da mesa: os vínculos de amizade, camaradagem, compromissos livremente escolhidos. As partes no contrato são mutuamente dependentes, elas retiram benefícios, mas não prazer, da mútua dependência. Mas a gente não senta à mesa com outros para algum lucro, e sim para ter prazer no convívio’ (Heller, Agnes. A Philosophy of History in Fragments. Oxford, Cambridge, MA: Blackwell, 1993, p. 150-151).
Terceiro conceito de cultura
Essa cultura do discurso também possui universalidade, mas no sentido de universal optativo: aqui todos têm iguais oportunidades, pois não há requisitos de saber, a conversa não gira em torno a especialidades e até abomina jargão especializado. Não é o mundo perfeito para os esnobes críticos da cultura, mas é um mundo possível para os amantes de alguns objetos seletos que pertencem ao universo do espírito absoluto. Com a vantagem de que esse discurso não se limita a conversar ou trocar experiências sobre objetos de alta cultura. Pode-se conversar, nesse segundo sentido de cultura, sobre tudo: livros, arte, filosofia, política e até futebol.
O terceiro conceito de cultura pode ser chamado de antropológico, e descreve a soma dos traços peculiares de uma sociedade, desde seus gostos culinários até seus modos de vestir e ser, enfim, sua ‘diferença’. Mas esse conceito também é universal, só que no sentido empírico: todas as sociedades existentes têm sua cultura. O paradoxo da modernidade nesse terceiro sentido de cultura é o dilema hoje traduzido nos debates do chamado multiculturalismo e nas tentativas de reconciliar universalidade e diferenças. Como aqui se manifesta o paradoxo da liberdade e da própria modernidade, é evidente que ‘universalismo e diferença reconciliam-se facilmente apenas no papel’. O dilema é insolúvel, de modo que nossa preferência por alguma solução será, como tantas outras escolhas, uma escolha existencial que é como um ‘salto’:
‘Se uma cultura rejeita o reconhecimento dos direitos humanos e dos outros legados da herança normativa da Ilustração, e reivindica ter valor igual ao de todas as outras, essa reivindicação pode ser legitimamente rejeitada, de um lado. Mas por outro lado, a rejeição não conseguirá ser completamente legítima, porque o homem é livre para escolher a não-liberdade. […] se uma cultura fundamentalista consegue acomodar as três lógicas da modernidade sem reconhecer os direitos humanos, as liberdades civis e assim por diante, na mesma proporção que as outras o fazem, ainda assim ela não pode ser com legitimidade tratada como algo sem valor. Porque esse julgamento superimpõe um conjunto de normas, próprias de uma cultura, a outra cultura que não reconhece sua validade. E essa superimposição também contradiz a herança normativa da Ilustração e do romantismo. Na prática, então, cada cultura faz uma escolha decisiva. Ela será como um salto, do mesmo modo como várias outras de nossas escolhas. Não há fundamento absoluto para a rejeição de culturas que não reconhecem as normas da Ilustração no seu conjunto, mas também não há fundamento absoluto para reconhecer cada diferença segundo seus próprios padrões. […] Não se trata de uma escolha lógica, mas de uma escolha ético-política. E isso significa que cada homem e cada mulher que escolher assume responsabilidade por sua própria escolha’ (Heller, 1999, p. 139-140).
A citação foi longa, mas é importante. Mas já é possível voltar ao ponto de partida: a cultura no ciberespaço. Distinguindo os três conceitos de cultura, podemos apreender de modo mais simpático o que o ciberespaço pode oferecer de positivo.
Conceito de cultura no ciberespaço
Em relação ao primeiro conceito, de ‘alta cultura’, a internet pode transformar-se numa imensa biblioteca universal, como a de Alexandria em seu tempo. Pode guardar, preservar, fazer acessível incontável número de obras do espírito e isso não pode ser ruim. Pierre Lévy tem razão, e não ingenuidade, ao reconhecer esse lado bom do Dilúvio: ‘…o novo dilúvio não apaga as marcas do espírito. Carrega-as todas juntas. Fluida, virtual, ao mesmo tempo reunida e dispersa, essa biblioteca de Babel não pode ser queimada’ (p. 16).
O avanço da tecnologia da informação também proporciona o retorno à sociedade (ao espaço público) do que era para ser ‘universal’, mas foi-se tornando cada vez mais privado: os estudos universitários. Mas é ilusão pensar que apenas por existir no espaço virtual uma tese acadêmica será boa ou instigante ou instrutiva. De algum modo existirá autoridade, o que muda é a forma de reconhecimento. Pode não existir o filtro ‘institucional’ do conselho editorial, mas seguirá existindo algum filtro difuso. E não se evitará que obras e autores bons sejam injustamente esquecidos, e obras e autores ruins sejam injustamente celebrados, sina que apenas repete o que se passa no mercado de livros de papel. Enfim, parece que a cultura continuará sendo o que é, independentemente do novo meio eletrônico. Talvez um único gênero novo, aparentado à instalação das artes visuais, pode ter surgido graças aos efeitos técnicos que a interatividade proporciona. Todos os demais gêneros e formas culturais são os mesmos que já foram inventados e reinventados.
Existe cultura na internet? Pode existir, mas não existe uma alta cultura da internet e quase poderíamos contradizer o título de Lévy: não existe uma ‘cibercultura’. A cultura vem de outro mundo, não nasce nesse universo fechado on-line. Mas a internet não é o Inimigo, como pretendem os críticos da cultura. Nem será ela quem vai destruir a normatividade do cânone, algo que vem sendo destruído politicamente pela tendência da democracia moderna a tornar-se igualitária, ressentiment: tendência a nivelar os três conceitos de cultura ao conceito antropológico e decretar que, se todas as sociedades possuem cultura, todas as culturas seriam iguais. Essa guerra cultural começou antes da internet, não nasceu com ela.
O segundo conceito de cultura no ciberespaço
O empobrecimento intrínseco à transformação do mundo em império dos diletantes pode ter moderação se vincularmos o diletantismo ao terceiro conceito de cultura, que fala que cultura é um modo peculiar de expressão de cada sociedade. Esse conceito é empiricamente universal. O que interessa aqui é que as pessoas aproveitem seus dons, mesmo que de modo diletante, porque o livre jogo da imaginação é sempre um ganho: torna a gente menos bárbaro naquele sentido de desenferrujar a alma, atenuação da transformação da pessoa em função pela necessária divisão social do trabalho. Foi esse livre jogo da imaginação que levou o poeta/filósofo Schiller a recomendar uma ‘educação estética’ para a humanidade, algo que não tinha nada que ver com a transformação de cada pessoa em crítico literário profissional ou esnobe crítico da cultura. Que todo mundo dance, cante, pinte, fotografe, e possa encontrar na internet um salão permanentemente aberto para expor seus trabalhos, não pode ser algo negativo (e na verdade é esse o conteúdo real da utopia de Riesman para atenuar a solidão-coletiva das pessoas direcionadas para-os-outros de nosso tempo). Esse dilúvio não incomoda se não concorrer com o espírito absoluto. Cada um exporá seu talento, maior ou menor, e terá seu próprio ‘nicho’, seu lugar ao sol. A igualdade de oportunidades aqui não oprime porque ela não destrói, por si, a normatividade do cânone.
Mas não sejamos ingênuos. A exposição num salão universal do dilúvio diletante pode, sem querer, começar a concorrer com o espírito absoluto, de tal modo que tenhamos dificuldade em ensinar nossos filhos a ‘navegar’ nesse dilúvio e separar o joio do trigo. Iniciar-se no costume de transportar-se ao espírito absoluto fica mais difícil pela superexposição ao excesso de informações, algumas não apenas diletantes, mas irrelevantes, e até patológicas. E aqui a ausência de autoridades, que podem ser autoritárias mas são formas de mediação, é assustadora. Dizia com acerto uma letra pop: como é que eu vou crescer sem ter com que me revoltar?
A liberdade da ausência de mediações no ciberespaço é muito parecida com a liberdade política em sua forma direta. À primeira vista parece que a liberdade aumenta, que a democracia parlamentar e representativa seria apenas uma hipocrisia, para usar a palavra predileta dos moralistas-políticos: seria instituição impeditiva da liberdade. Mas o que aumenta nas democracias diretas em suas formas contemporâneas, como a da autorrepresentação social nos organismos não governamentais (ONG´s), não é necessariamente a nossa liberdade. As pessoas que se dedicam incansavelmente à atividade da ONG já não são politicamente diletantes como os cidadãos interessados. Deliberações demoram, e as pessoas tem sua vida para levar, seu turno de trabalho para cumprir. O que se passa é uma forma nova de representação sem representatividade, porque ninguém elegeu as pessoas que se tornam ‘líderes’ dessas organizações. E esses líderes acabam tornando-se tão profissionais quanto os eterna e injustamente difamados políticos. A diferença é que os políticos profissionais são escolhidos por nós diretamente e podem ser trocados de vez em quando. O mundo da democracia direta contemporânea é substitucionista: somos simplesmente substituídos por autoridades auto-indicadas. Algo parecido acontece no ciberespaço. Aboliu-se o autoritário ‘conselho editorial’ e todos têm iguais oportunidades de publicar seus poemas. Alguns serão diletantes e até bons poetas, outros serão apenas chatos narcisistas, aqueles que ontem precisavam pagar ‘apedidos’ nos jornais. Mas esse é o nosso tempo. O ciberespaço tem espaço de sobra para todos. O lado positivo disso é que não precisamos concorrer com ninguém, não precisamos tirar espaço de alguém para existir, essa selva ‘aparente’ pode ser mais simpática do que a selva de ontem, mediada pelo poder das instituições, que não era tão doce e justo, apenas mantinha a violência de modo sublimado (mas lembre-se: isso não é ruim, é afinal ‘civilização’!).
O terceiro conceito de cultura no ciberespaço
Onde o ciberespaço fica mais simpático é na vinculação ao segundo conceito, a cultura do discurso. Aqui não soa ingênuo o entusiasmo de Pierre Lévy, quando afirma que esse mundo é bom por que:
‘Os amantes da cozinha mexicana, os loucos pelo gato angorá, os fanáticos por alguma linguagem de programação ou os intérpretes apaixonados de Heidegger, antes dispersos pelo planeta, muitas vezes isolados ou ao menos sem contatos regulares entre si, dispõem agora de um lugar familiar de encontro e troca’ (p. 130).
Na cultura do segundo conceito, a imediatez dos contatos humanos via internet pode trazer algo novo, a possibilidade de retorno, simbólico, ao começo da formação do espaço público moderno no salón burguês. É possível abrir um espaço de discurso cultural que seja universal no sentido optativo: em que a igualdade de condições de expressar um juízo de gosto sobre um livro ou a crítica de alguma instituição política não seja recebida como ofensa, pois nenhuma autoridade aqui é impositiva, e não se exercita ‘poder’. Com essa qualificação, o que diz Pierre Lévy sobre a liberdade na Web não fica tão perigoso. A cultura na internet pode ser:
‘expressão da aspiração de construção de um laço social, que não seria fundado nem sobre links territoriais, nem sobre relações institucionais, nem sobre as relações de poder, mas sobre a reunião em torno de centros de interesses comuns, sobre o jogo, sobre o compartilhamento do saber, sobre a aprendizagem cooperativa, sobre processos abertos de colaboração. O apetite para as comunidades virtuais encontra um ideal de relação humana desterritorializada, transversal, livre’ (p.130).
Essa é uma utopia que não parece aborrecida como a do império dos diletantes, porque ela não mede as construções do espírito humano pela régua do igualitarismo, não diz que algo tem valor por estar publicado na internet. É uma forma de cultura que reconhece o cânone e a autoridade, mas subjetivamente; não os impõe. Nesse conceito de cultura como discurso, nossa liberdade aumenta. Porque ter cultura não é querer distinguir-se acima de alguém, é querer apenas abrir uma janela para a transcendência, para o outro mundo, que está além deste. É abrir uma janela para o mundo do espírito absoluto. Para a liberdade.
Alguém mais perspicaz notará que precisei dar algumas voltas e fazer algumas qualificações para encontrar algo de positivo na internet e dirá que isso na verdade quer dizer que eu não gosto da internet. Eu não seria tão radical. Esse volteio todo provavelmente decorre do medo da tecnologia e de falta de curiosidade nata. Afinal, cresci arrumando os livros da biblioteca de meu pai, que hoje herdei, e esse mundo me soa familiar, e o ciberespaço, estranho. Parece que esse medo e falta de curiosidade seriam incompatíveis com o mal disfarçado propósito de ‘filosofar’ dessa comunicação. Mas talvez seja exatamente o contrário. Porque filosofar não é ‘inventar’ ou ‘descobrir’ mundos inexplorados. A criação desses mundos é mais próxima da arte e da ciência. Filosofar possivelmente é o que o grande filósofo Hegel disse que é: compreender o nosso tempo em categorias. Se ele está certo, ao dar todas essas voltas para achar algo de bom no ciberespaço, estou em boa companhia, porque numa formulação mais poética o filósofo também disse que ‘filosofar é encontrar a rosa na cruz do presente‘ (prefácio à filosofia do direito), e aproveitar o que nosso tempo tem de bom.
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Mestre em Direito (UFSC) e em Filosofia (New School, NY), procurador da República, autor de Democracia ou fundamentalismo? Esboços de compreensão política (2004), Esperança e Memória: Esboços de compreensão política e cultural (2007) e Paradoxos da Liberdade: Esboços de compreensão política (2010)