Não chegou exatamente a ser uma grande surpresa, mas a reação da grande imprensa à derrubada da cláusula de barreira em decisão unânime do Supremo Tribunal Federal merece alguns esclarecimentos neste momento tão importante da política brasileira, da qual com certeza a imprensa é ator-chave, em que se procura construir uma proposta sólida de reforma política. A intenção aqui é tentar demonstrar como este é um momento em que opções diferenciadas são colocadas aos atores políticos. E que opção a imprensa se inclina a tomar.
As diversas fórmulas dos sistemas eleitorais, entendidos como mecanismos de conversão de votos em cargos públicos, oscilam basicamente entre dois valores, entre os quais se estabelece uma relação negativa, ou seja, quanto mais se prioriza um mais se afasta do outro, como um continuum indicando a que valor o sistema político tende mais. Estes dois valores, que todo sistema político tenta obter em maior ou menor medida, é o da governabilidade e o da representatividade.
A cláusula de barreira é um típico mecanismo da governabilidade. Sua fundamentação é o pressuposto de que, com menos atores políticos relevantes no Parlamento, torna-se mais fácil, rápido e eficiente para o governo negociar apoios e aprovar medidas. O vínculo que a imprensa se concentrou em fazer neste caso foi com a reforma política. O subtítulo do editorial da Folha de S.Paulo de sábado (9/12) já avisa: ‘Decisão do STF que derrubou a cláusula de barreira projeta novas incertezas sobre o futuro da reforma política’.
Pouco conservadora
A incerteza estaria no fato de que, supostamente, a decisão do TSE está, de acordo com o mesmo editorial, ‘preservando de instabilidade e casuísmo as regras do jogo democrático’. A questão que se coloca, novamente, é o que se pretende valorizar. No ‘jogo democrático’ com certeza dever-se-ia valorizar mais a representatividade. No modelo de democracia representativa em que vivemos, supostamente é a vontade do eleitor que se deve levar em conta.
O princípio é o de que todo o poder emana do povo, que o transfere a seus representantes legítimos, que por sua vez o exercem em seu nome. A representatividade estaria simbolizada aqui inclusive pelos partidos minoritários, chamados de ‘nanicos’ pelo editorial da Folha. Afinal, a vontade do eleitor pode ter dado menos cadeiras a esses partidos, mas ainda assim o fez. Simplesmente reduzi-los à condição de sub-representação, como alertaram os votos dos ministros, atenta frontalmente a noção de Estado Democrático de Direito, que tem como um de seus baluartes a proteção dos direitos da minoria. Para o editorial da Folha, ‘como instância guardiã da Constituição, é natural que o tribunal tenha um papel mais conservador’.
A Constituição de 1988 tem muito pouco de conservadora. Em muitos aspectos, como o da seguridade social ou da função social da terra, representa o que de mais progressista já se produziu neste país. Se mais decisões judiciais fossem tomadas orientadas pelos princípios que ali se estabelecem, nascidos da efervescência de uma experiência rica em participação, o Brasil com certeza estaria em melhores rumos.
Faltou informar
Dois pontos devem ser discutidos aqui. Os dois se referem à forma como a questão é abordada. O primeiro é basicamente a imagem poderosa que é construída pela Folha, a de que partidos pequenos são como parasitas que se sustentam das benesses do Estado. Assim segue o editorial:
‘Com certo colorido sentimental, o ministro Marco Aurélio de Mello resumiu o pensamento de seus pares do STF quando comparou a cláusula de barreira ao ato de ‘retirar de um enfermo os tubos que o mantêm vivo’. Que tubos seriam esses? Em primeiro lugar, as verbas do fundo partidário. São R$ 120 milhões. Se a cláusula de barreira fosse aprovada, praticamente secaria a fonte de financiamento para os partidos que não alcançaram 5% dos votos válidos na eleição para deputado federal’.
O que a Folha negligencia informar é que o fundo partidário já é dividido proporcionalmente entre os partidos de acordo com sua representação na Câmara dos Deputados. Ou seja, esses partidos recebem uma fatia muito pequena do bolo para serem vistos como parasitas. Este observador faz um convite ao leitor para tentar formar uma organização partidária e ver por si mesmo se a existência de um partido com pouca ou nenhuma representação é sinônimo de lucros milionários, como a Folha sugere. Quem não quiser embarcar na aventura pode simplesmente se recordar do programa eleitoral do PCO e imaginar se eles andam de fato nadando em dinheiro.
Efeito Duverger
O segundo ponto vem de uma noção, talvez reveladora de um pensamento social mais profundo da Folha, de que os menos abastados podem crescer e vencer na vida sem enfrentar limitações estruturais do ambiente em que estão inseridos. Embora geralmente mais difíceis de serem observadas, estas limitações existem e atuam de forma intensiva. Afirma a Folha:
‘Para o STF, uma tal divisão de prerrogativas tenderia a ferir o direito de organização das minorias políticas. O raciocínio não se sustenta, uma vez que a cláusula de barreira não impede, em tese, nenhum partido pequeno de existir e crescer’.
Vejamos. A ciência política há muito trabalha com um conceito conhecido como o ‘efeito mecânico de Duverger’. Basicamente, é a constatação de que todos os sistemas eleitorais, mesmo os proporcionais como o brasileiro, tendem a produzir maiorias artificiais, ou seja, a sobre-representar os partidos maiores e sub-representar os menores. Tal efeito é verificado observando-se os desvios de proporcionalidade. Para isso, basta calcular, a partir da porcentagem da votação obtida pelos partidos nacionalmente, o tanto de cadeiras, proporcionalmente, que o partido deveria ter na Câmara.
Menos opções
Tomemos o exemplo do PMDB, a maior bancada da próxima legislatura, com 89 deputados. O partido obteve 14% dos votos nacionais para a Câmara – 14% de 513 (número de cadeiras da Câmara) é 74. Isso significa que o eleitorado quis dar 74 cadeiras ao PMDB, mas o sistema eleitoral produziu para ele 89. São 15 deputados fabricados artificialmente. Uma bancada inteira maior que partidos como PV e PCdoB. Essa tendência de sobre-representação é observável ainda em legendas como PT, PSDB, PFL e PP. A partir do PSB, a tendência se inverte e passa a ser de sub-representação. Ou seja, ‘naturalmente’ os partidos pequenos já enfrentam dificuldades estruturais para sua existência e crescimento.
Mas a cláusula de barreira age de forma mais clara em outro conceito, o ‘efeito psicológico de Duverger’. Este não mais se refere a um comportamento do sistema eleitoral, mas sim a um comportamento do eleitor. Parte também de uma constatação. A de que, com o tempo, os eleitores tendem a votar em partidos mais competitivos e que tenham chance efetiva de influenciar algo, ainda que estes não sejam sua preferência inicial ou máxima. Isso se deve simplesmente ao fato de que eleitores querem que seu voto influencie algo. Que sua vontade seja levada em conta. É o chamado voto útil. Com o tempo, eleitores de partidos menores tenderiam a votar em partidos que ultrapassam a cláusula, ainda que estes não fossem suas primeiras opções. Também por isso a cláusula condenaria os partidos minoritários e, indiretamente, a maximização dos interesses do eleitorado.
Um dos argumentos mais fortes na defesa da cláusula é a de que ela também é um instrumento de representatividade, na medida em que reduz as opções do eleitorado tornando-lhe mais fácil a seleção de plataformas políticas. Os processos de fusões partidárias desencadeados após as eleições ilustram a questão. Curiosamente, a argumentação em defesa da cláusula que passa pelo pólo mais democrático dos sistemas políticos, o da representatividade, foi ignorada pela Folha. Ainda assim, essa justificativa não se sustenta, pois essa redução do leque de opções só se dá com a diminuição de opções legítimas e significativas, embora minoritárias, do eleitorado.
Outra opção
Também não se sustenta a noção comum de que, observadas as fusões, seria bom não só para a governabilidade, mas também para a idoneidade do processo político, pois acabaria com pequenos partidos fisiológicos que ‘vendem’ seu apoio ao governo em trocas clientelísticas de cargos e favores, criando um ambiente propício à corrupção. Não quando o maior partido da casa, o PMDB, portanto o que mais se afastou de não conseguir ultrapassar a cláusula, negocia seu apoio no ‘governo de coalizão’ sobre essas bases. O tamanho do partido não é critério para definir seu ‘fisiologismo’. E existem vários modos de se reduzir as opções do eleitorado, facilitando sua decisão, sem atacar a representatividade. Um deles seria a adoção da lista fechada com o voto em legenda. Os partidos fisiológicos, entendidos como males dentro dessa concepção, perderiam espaço para partidos mais ideológicos e programáticos. Não necessariamente os menores para os maiores.
Na verdade, o que se camufla por trás da defesa da governabilidade é um forte viés autoritário, que parte da noção de que o Congresso ‘atrapalha’ o governo a governar. De que ‘atrasa’ suas propostas em vez de enriquecê-las. Mais fácil seria então simplesmente fechá-lo, não?
Num momento em que amplos setores da população manifestam seu repúdio, desinteresse ou mesmo deboche com a Câmara e a política em geral, seria tolice, senão irresponsabilidade, atacar sua representatividade, enfatizando a governabilidade. A democracia brasileira agradeceria se, nas bases de uma irrestrita e maciça inclusão, e não exclusão como a cláusula pretende, a sociedade fosse convidada e participasse ativamente da construção e do enriquecimento de uma proposta de reforma política. Neste prelúdio, infelizmente, a imprensa brasileira escolheu outra opção.
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Estudante de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e Jornalismo (UniCeub), Brasília