Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Cobertura da mídia, “cautela e serenidade”

John B. Thompson mostra como as mudanças na cultura política – em particular, “o gradual declínio da política baseada nos partidos classistas” – deram origem ao que chama de “política de confiança”. Neste novo contexto, a credibilidade e a confiabilidade dos líderes políticos – vale dizer, sua reputação – se torna cada vez mais importante. O capital simbólico se transformou no bem mais precioso que um político pode ter e a mídia passa a ser a arena privilegiada onde são criadas, sustentadas ou destruídas as relações do campo político [O escândalo político, Editora Vozes, 2002].

Argumentei em Mídia: crise política e poder no Brasil [Editora da Fundação Perseu Abramo, 2006] que a prática jornalística que tem predominado na grande mídia brasileira é a cobertura dos “escândalos políticos” dentro do enquadramento da “presunção de culpa”.

A grande mídia tem atribuído a si mesma não só a prerrogativa de fazer o julgamento, mas, sobretudo, de condenar publicamente pessoas e instituições cujos processos penais ainda não foram concluídos ou, em muitos casos, não foram sequer acolhidos pela autoridade judicial ou, pior ainda, foram absolvidas nos fóruns legítimos onde responderam a processo.

Esse comportamento pode ser verificado, por exemplo, pela utilização indiscriminada do adjetivo “suposto”. Ele tem servido para lançar todo tipo de insinuações, acusações, ilações, generalizações e suspeições, ao mesmo tempo em que dissimula a responsabilidade do jornalista responsável pela matéria.

Princípio universal

Há vários casos recentes em que “suspeitos” já condenados publicamente são logo depois absolvidos pelas instâncias formais encarregadas da apuração das denúncias e a mídia ou silencia ou não dá a essa absolvição destaque equivalente àquele que a condenação pública mereceu.

Ignoram-se as normas do Código de Ética dos Jornalistas que determinam “ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, todas as pessoas objeto de acusações não comprovadas, feitas por terceiros e não suficientemente demonstradas ou verificadas”; “tratar com respeito a todas as pessoas mencionadas nas informações que divulgar” (artigo 14) e “permitir o direito de resposta às pessoas envolvidas ou mencionadas (…), quando ficar demonstrada a existência de equívocos ou incorreções” (artigo 15).

Mais importante: ignora-se o princípio universal da “presunção de inocência”, consagrado como direito humano fundamental desde, pelo menos, a Revolução Francesa e inscrito em vários documentos internacionais subscritos pelo Brasil.

Ignora-se, inclusive, a nossa própria Constituição que, em seu artigo 5º, reza que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Eleição presidencial

Em pertinente comentário sobre o Artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o jurista e ex-senador José Paulo Bisol, chama a atenção que…

“…o jornalismo brasileiro tem, entre outras paixões, a de participar de investigações, a de investigar ele próprio e, principalmente, a de julgar. (…) Concretamente, a mídia assume um papel de poder policial e judiciário paralelos, mas, enquanto os poderes legítimos estão enclausurados em princípios, diretrizes e normas legitimadas procedimentalmente em mandatos de coerção cada vez mais cuidadosamente controlados (…), a mídia não apenas se arvora ela própria em titular desse controle, mas assume, a seu critério, os próprios mandatos de coerção, e os exerce na mais absoluta permissividade, definindo, depois do fato, a regra moral a ele referida – precisamente ela que adota explicitamente o relativismo ético – e aplicando punições não previstas constitucionalmente e irrecorríveis, destruindo reputações, estabilidades, carreiras e vidas inteiras sem conceder aos acusados um espaço de defesa equivalente ao da acusação, quando concede algum, proclamando, em cima dessa tragédia, o triunfo da liberdade de imprensa. (…) A mídia é, hoje, a mais recorrente violação do artigo 11 da declaração Universal dos Direitos Humanos.”

A importante colunista Eliane Cantanhêde, em artigo sob o título “Sem linchamento” (Folha de S.Paulo, 6/10/2006) comentado a cobertura dada ao acidente com o vôo 1907 da Gol, diz:

“A cada dia aumenta a versão de que o Legacy e os pilotos Joe Lepore e Jan Palladino foram os principais responsáveis pela queda do Boeing da Gol, matando 154 pessoas. Mas é preciso cautela e serenidade para não precipitar um veredicto e não produzir um linchamento público permeado de passionalidade contra os yankees.”

Perfeito. São exatamente “cautela e serenidade” que deveriam orientar os jornalistas e a grande mídia brasileira não só em relação aos pilotos do Legacy, mas a todos que, por uma razão ou outra, se transformem em notícia como “suspeitos” de haverem praticado alguma ilicitude. Esse comportamento, certamente, assume ainda uma importância maior às vésperas do segundo turno de uma eleição presidencial que vai decidir os destinos do país nos próximos anos.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)