Nos últimos 25 anos, o Brasil acompanhou pela televisão o último suspiro de quatro personagens da história: um político, um esportista, um papa e um artista. Os três primeiros tiveram sua vida e morte retratada de uma forma emocionante numa medida aceitável. O último provocou polêmica pelo espetáculo do funeral. Mas daqui para a frente, com a benção da era digital-interativa, tem jeito de ser diferente? A resposta já estamos vendo na cobertura das tragédias provocadas pelas chuvas nesse verão.
A onda de desenvolvimento da televisão digital no mundo começou na década de 1990, marcada como o início da ‘era digital’. Na feira da NAB, National Association of Broadcasters, promovida pelos radiodifusores dos EUA, em Atlanta, foi anunciado que o novo sistema ofereceria ao telespectador a possibilidade de clicar sobre a gravata do apresentador do telejornal e efetuar a compra daquela parte do figurino. Esse era o exemplo mais eficaz da época, para apresentar a era digital ao público leigo e especializado.
Revendo hoje o tema da era digital, percebemos a visão míope dos argumentos, a reprodução de ideias confusas e a falta de informação sobre a exata dimensão e aplicabilidade do novo sistema. Hoje, passadas quase duas décadas do início da era digital, a televisão digital já está implantada no Brasil, embora faltem finalizar os aplicativos, prover o telespectador de recursos inovadores e de conteúdo diferente do que já existe. Apesar do tempo transcorrido e das mudanças implantadas, o conjunto de exemplos sobre a era digital permanece no mesmo nível daquela imagem do clique na gravata do telejornalista. Hoje, contudo, o nó é um pouco maior.
Uma atração obrigatória
Inclusão digital, multiplataforma, conteúdo interativo, t-learning, cross-media… entre outros nomes é a nomenclatura preferida pelos especialistas para dourar a pílula que não passa de uma aspirina. Nomenclatura em inglês poderia ser traduzida para palavras conhecidas em português, mas a língua inglesa tornou-se a língua oficial da era digital. Apesar do sofrimento para acompanhar as mudanças e os novos nomes, ninguém morre de dor de cabeça ou da falta de conhecimento sobre o mundo digital interativo.
Esta é a primeira versão de um Manual de cobertura de funerais que pretende fazer desse ‘pó’ que forma o conjunto de idéias vagas e confusas sobre as mídias digitais algo concreto e bem delineado, ou melhor, algo bem próximo ao mundo dos mortais. Aliás, a escolha motiva-se justamente na aproximação do leitor a exemplos terrenos, aplicáveis no seu mundo real. É praticamente impossível alguém não ter passado por tais experiências – acompanhar a cobertura do enterro de uma celebridade pela mídia ou ter participado de um funeral. O leitor provavelmente já esteve em cerimônias fúnebres, sendo o morto famoso ou amigo. Para tanto, busquei um tema geral – a cobertura de eventos pela mídia – para chegar a um subtema – funerais.
A riqueza de detalhes e a previsibilidade dos acontecimentos em muitos eventos fazem com que o esperado se torne uma atração obrigatória. Por exemplo, numa simulação de cerimônia de casamento, gera muita expectativa e boa dose de sarcasmo a pergunta do sacerdote sobre alguma objeção de alguém contra a união dos nubentes. Em novelas, é uma interrupção obrigatória da cena prevista em 99,9% dos roteiros que alguma personagem se manifeste nesse momento da cerimônia. Na vida real, no entanto, a proporção é inversa, pois a maioria opta pelo silêncio e pela continuidade do evento.
Vender imagem da empresa ou do profissional
Os funerais de personalidades e celebridades que marcam a história no Brasil e no mundo servem de exemplo sobre a evolução desse tipo de evento que monopoliza a imprensa. Os funerais do presidente eleito que não tomou posse, Tancredo Neves, em 1985, e do piloto Ayrton Senna, em 1994 e outros internacionais como o enterro da princesa Diana, em 1997, do papa João Paulo II, em 2005, teriam provocado uma corrida midiática pelo uso das tecnologias digitais e interativas.
Esse novo uso pode ser constatado na cobertura do funeral do astro pop Michael Jackson. As redes sociais – Orkut, Facebook, Twitter etc… – estão lotadas de citações do astro. O YouTube registrou milhões de acessos ao conteúdo do cantor nos primeiros minutos do anúncio de sua morte. O Google ficou congestionado por causa da consulta ao nome do cantor. Os funerais dos famosos que antecederam a era do showneral não conheceram os efeitos da era digital. Trabalhar com esses elementos do entretenimento e com as novas tecnologias é uma tarefa das mais complexas para os profissionais de comunicação que atuam em multiplataformas digitais interativas.
A morte do pop star Michael Jackson foi tema em 2009 da pauta da imprensa internacional. Os fãs do astro exploraram todas as formas de manifestações analógicas e digitais, ao vivo e gravadas, presenciais e virtuais. Isso só é possível com o conhecimento das TIC, as Tecnologias e Informação e Comunicação. A mais notável mudança nessa cobertura do enterro do cantor foi a informação que pipocou, primeiro, nas redes sociais da Internet e, somente mais tarde, foi divulgada pelas grandes redes de televisão tradicionais. A CNN foi superada pela rapidez do Twitter e isso provocou espanto mundial.
Este artigo poderia ser batizado tanto de ‘cobertura de casamentos’ como de ‘decisão de campeonatos de golfe’. Não seria menos interessante se abordasse outros eventos como a visita do papa, a posse do presidente da República, a inauguração de um monumento. Mas qualquer que fosse o evento creditado na capa, o subtítulo obrigatoriamente deve ser acompanhado de ‘digital interativo’. Senão não vende a imagem da empresa ou do profissional que escreve o artigo.
Aprender de novo o que é ser gente
Essa estratégia está sendo utilizada não somente pelos mais variados veículos de comunicação, mas também por empresas de serviços, profissionais liberais e interessados no assunto. Para passar a idéia de ‘antenado’, até os que subiram ao telhado uma única vez na vida para ajustar a antena do receptor de televisão doméstico já são especialistas em mídia, e juntam ao título dos seus negócios o DI (digital interativo): Imobiliária DI, Núcleo de Negócios DI, Gráfica DI; Padaria…; o novo modelo de negócio trazido pelas mídias digitais impulsiona o mercado e os mercadores, os cursos e os tutores, tornando-os mais atraentes e chiques.
É verdade que a popularização dos meios de comunicação tem permitido a muitos excluídos a possibilidade de se tornarem produtores de conteúdo. Se todos podem ser produtores de conteúdo também não há nenhum impedimento para tornar-se especialista em conteúdo. Porém, essa quantidade de novos conteudistas não leva necessariamente à qualidade da produção e dos produtores. Para isso é necessário um domínio mínimo da linguagem, dos recursos e dos formatos que podem ser aplicados em cada produção. O planejamento de cobertura de eventos é um desses desafios que só quem entende se arrisca a produzir. É quando se separa o joio, formado pelos especialistas de última hora do trigo, cultivado por anos de experiências e domínio da aplicação dos recursos analógicos e digitais, de roteiro e produção, de jornalismo e entretenimento.
Para quem achou que o funeral do Michael Jackson foi o limite da mídia, espere para ver o próximo funeral de um famoso. Posicionamento de câmera absolutamente planejado, câmera no teto para dar um enquadramento diferenciado e frontal do morto, a iluminação – interna e externa – controlada para dar um tom intimista ou caracterizar o ambiente com globos com geram figuras nas paredes, microfones direcionais para captar o choro e os cumprimentos, a transmissão para mobile, arquivos para serem baixados em iPod com os últimos momentos do ídolo, venda de cotas de patrocínio para bancar todo os custos de produção com alimentação da equipe, hospedagem, transporte, câmera aérea, vídeos no YouTube… O público deve se acostumar com esse espetáculo de cobertura do showneral e aprender de novo o que é ser gente no mundo digital.
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Jornalista e radialista, doutor em Ciências da Comunicação, autor de Gêneros e formatos na televisão brasileira, (Summus, 2004). e Seja o primeiro a saber – A CNN e a globalização da informação (Summus, 2005)