Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Crime e castigo na internet

Como é de conhecimento geral, sites de todas as vertentes e níveis de governo estiveram sob ataque de um enxame de hackers nas últimas semanas. Muitos foram derrubados e uns poucos invadidos, o que podia interromper a prestação de serviços à cidadania e a empresas. Não que isso tenha acontecido; serviços essenciais, como a Receita, atravessaram incólumes o tsunami.

Defensores da internet vigiada entendem que só isso já é motivo para acelerar a passagem da Lei Azeredo (o “AI-5 digital”) pela Câmara, onde a proposição se encontra depois de aprovada pelo Senado. Mas não é. O surto de ataques e os sites de e-gov prejudicados são resultado de um fenômeno muito mais básico e, por isso mesmo, endêmico na administração pública: a falta de políticas e estratégias e, na presença delas, a incapacidade operacional.

Segundo relatório recente do TCU, nada menos que 65% dos órgãos federais não têm uma política de segurança da informação (veja smeira.blog.terra…), o que tira muito da graça de derrubar seus sites e invadi-los para subtrair, aqui e ali, informação via de regra irrelevante.

Nos últimos 15 anos, toda uma geração cresceu na internet, íntima de muitos de seus segredos. Parte transformou tal intimidade em ferramentas que tornam possível feitos que o imaginário, ao desconhecê-las, atribui à genialidade. Menos, muito menos do que isso, está em jogo na vasta maioria dos casos.

Marco legal para uma rede cidadã

Mas é certo que a geração hacker cresceu à margem do veio social, ignorada e, ao mesmo tempo, quase sempre ignorando um mundo onde quase ninguém sabe o que é ou joga World of Warcraft. E muito menos do que é capaz uma linha de comando na hora e no lugar certos. Essa separação levou a visões de mundo, de cada lado, que são de difícil articulação sem que se faça um esforço consciente, coerente e de longo prazo para atrair hackers de todas as matizes para o jogo social.

De pouco ou nada adianta um “dia do hacker” no governo sem que haja uma política continuada de absorção de suas competências pela sociedade. Até porque não há uma guerra, no sentido de assaltos premeditados, liderados e articulados, que visam a causar danos às infraestruturas de informação essenciais à sociedade e economia.

Pelo menos por enquanto: na onda de ataques, não se tentou invadir bancos, roubar senhas, inviabilizar serviços e utilidades públicas. Existe, sim, uma ideologia juvenil, dispersa e pouco articulada, de combate à corrupção, especialmente da classe política. E uma crença de que muito se pode descobrir sobre os porões do poder nos repositórios de informação espalhados pelos órgãos públicos. E que sua exposição levaria a culpados muitos. Fala-se de licitações fraudadas, trocas de e-mails entre interessados em dilapidar o erário, mas pouco se produziu, até agora, de substancial e comprovado.

Isso quer dizer que não estamos procurando um (ou melhor, muitos) Raskólnikov: nada, ainda, foi destruído, direta ou colateralmente. Tampouco há um adolescente com um teclado na mão e um drama psicológico na cabeça, atormentado pelos seus atos “contra” o sistema. Ainda não chegamos nesse nível de consciência, trama e trauma. Mas podemos chegar, e os culpados, merecedores de castigo, estarão muito mais do lado de cá, por não entenderem e não saberem capturar o imaginário de uma geração, do que de lá, que podem começar a entender e saber usar, cada vez mais e como a geração 68, seus recém-adquiridos poderes.

Usar uns poucos e irrelevantes incidentes – devidos mais à incompetência de gestão e operação públicas do que às capacidades dos hackers – como argumento para acelerar a criminalização de comportamentos em rede, antes que se discuta e decida por um marco civil para a internet no Brasil, é mais do que botar o carro à frente dos bois. É ignorar a imensa comunidade que vem, paulatinamente (sim, leva tempo), tentando criar um marco legal para uma rede cidadã, e não um ambiente viciado e vigiado onde seremos, todos, culpados até prova em contrário.

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[Silvio Meira, fundador do www.portodigital.org e cientista-chefe do www.cesar.org.br, é colunista da Folha de S.Paulo; @srlm]