Chegamos ao novo começo de um processo que insiste em não terminar, o da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação. A segunda fase, realizada em Túnis, capital da Tunisia, sentiu fortemente o desconforto de trabalhar articulação política no padrão das negociações das Nações Unidas sob um regime forte, ditatorial, de severo controle sobre as pessoas. Policiais por toda parte, ostensiva segurança e um clima de constante vigilância. É fato que aqui esteve uma autoridade importante do Estado de Israel que, curiosamente, falou em seguida a Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina. É fato que a Jordânia sofreu com atentados terroristas, e tudo isso marca a organização de qualquer encontro internacional. E é razoável uma tensão maior em relação à segurança. Mas tratar na Tunísia, sob o regime de Ben Ali, da conformação de uma estratégia internacional para a sociedade da informação – multilateral, com aspirações de aprimoramento da democracia – que seja transparente e inclusiva e que seja uma ferramenta para o desenvolvimento dos países da periferia é, no mínimo, curioso.
A inviabilização, por boicote do governo tunisiano, da Cúpula Cidadã, que estava sendo articulada por organizações da sociedade civil, é uma mancha difícil de esquecer em todo o processo. Já os resultados são avaliados a partir de um jogo de força e poder midiático. Os norte-americanos, que tiveram que enfrentar a resistência quase unânime dos demais países na concertação de uma nova lógica na governança dos números e nomes de domínio da Internet, difundem sua vitória na manutenção do status quo ao menos pelos próximos três anos. Países como o Brasil afirmam uma grande vitória, pois ‘conquistaram’ a criação de um Fórum sobre Governança da Internet no qual a discussão seguirá. Está prevista uma nova rodada, ainda não confirmada, para 2006, em Atenas, Grécia. Outros atores importantes nesse processo, como a União Internacional das Telecomunicações (UIT), parecem não viver a sensação de ‘empate’ no que se refere ao seu descomunal esforço para se reposicionar na geopolítica internacional no cenário da globalização e aos resultados alcançados até o momento. A UIT apostou muitas fichas e muito dinheiro – das doações das cerca de 700 empresas que dela participam – para assumir a governança da Internet.
Uma Cúpula em aberto
O fim desses processos que reúnem chefes de Estado prevê, tradicionalmente, conferências de imprensa e divulgação de documentos como declarações de princípio e planos de ações para dez, vinte anos. Este processo específico gerou um documento chamado ‘Compromisso de Túnis’, que tem como grande destaque a informação de que, na discussão central, não haverá uma deliberação, mas sim o prosseguimento das negociações. Não há um espírito de celebração multilateral da tarefa de implementar os acordos. Neles estariam governos e suas disputas comerciais, geopolíticas, diferenças culturais e religiosas, entidades do setor privado e da sociedade civil buscando avaliar o que poderia ser implementado desde o local e até onde os governos podem avançar nas agendas dos direitos humanos e do desenvolvimento econômico e social. Vê-se, pelo contrário, uma declaração em aberto, a confirmação de que, de certa maneira, esta Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação reflete uma iniciativa artificial na configuração do processo de reuniões de chefes de Estado nas Nações Unidas. A CMSI foi uma oportunidade para empresas, governos e a UIT, oportunidade essa que parecia sobremaneira promissora em 2000. Em maio de 2001, a ‘bolha da Internet’ foi um violento golpe do qual a iniciativa não teve fôlego para se recuperar. O importante é que os países em desenvolvimento, as entidades da sociedade civil e o setor privado, a partir de suas estratégias, encaminharam a pauta da CMSI para problemas que não se buscavam resolver, como a governança da Internet e o financiamento para a implementação de uma infra-estrutura para a sociedade da informação nos países periféricos. Se não temos resultados concretos, temos, ao menos, vários problemas postos.
A Declaração da Sociedade Civil e a presença da América Latina
As organizações da sociedade civil presentes na segunda fase novamente se organizaram para apresentar suas contribuições para a formulação de conceitos mais amplos do que o de sociedade da informação – que deve incorporar princípios e prioridades que possam impulsionar sociedades democráticas, inclusivas e participativas que facilitem o acesso pleno à informação e ao compartilhamento do conhecimento e que este seja compreendido como um bem público no espírito da conservação da riqueza da diversidade cultural em nosso mundo. O documento apresenta proposições sobre o financiamento dos investimentos em tecnologias de informação e comunicação para o desenvolvimento, a centralidade dos direitos humanos, a necessidade de uma governança global, a ampla participação dos setores interessados, igualdade de gênero e outro temas prioritários para as entidades da sociedade civil.
A Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação não tratou de maneira decisiva e concreta da questão do financiamento para projetos de tecnologias de informação e comunicação na América Latina e no Caribe. Contudo um avanço importante teve lugar: o início das negociações para a implementação do eLAC 2007, um plano de ação regional para a sociedade da informação. Foram realizadas três reuniões oficiais do Grupo de Países de América Latina e Caribe (Grulac) abertas à participação da sociedade civil. Nas reuniões foram decididas as linhas gerais de um mecanismo regional a ser coordenado por representantes dos governos de Equador, Brasil, El Salvador e de um país da Comunidade Caribenha (CariCom). O documento acordado prevê a colaboração com a entidades da sociedade civil da região.
As expectativas, agora, passam para a conformação do Fórum sobre Governança da Internet – qual será seu mandato, como será a participação, quais os resultados possíveis e que incidência terá no futuro da governança. Sobre os mecanismos de implementação e financiamento, a questão parece recortada regionalmente em projetos como eLAC 2007.
Da parte das redes, associações e entidades da sociedade civil fica o compromisso de manter a atenção sem desmobilizar. Para a Rits, foi um grande aprendizado, e temos a expectativa de haver cumprido com nosso papel de monitorar o processo, apresentar contribuições, trazê-lo para a agenda das entidades civis brasileiras, informando, articulando politicamente junto ao governo federal e fazendo eco das principais demandas para uma apropriação cidadã das possibilidades da tecnologias da informação e comunicação para o desenvolvimento humano.
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Paulo Lima é diretor executivo da Rits – Rede de Informações para o Terceiro Setor