Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Datacracia

Caminhamos para uma época de vigilância sem precedentes. A coleção de rastros digitais deixados a cada chamada, transação financeira, uso de GPS e rede social, alimenta bases de dados comportamentais que conseguem identificar, com precisão crescente, os movimentos e dinâmicas da cidade.

A rede, que já era quase onipresente, se torna também onisciente. Críticos podem espernear, mas o fato é que a vida privada, na forma como a conhecemos hoje, é coisa do passado. O mundo digital é um mundo de registro e observação, e reclamar dele é a mesma coisa que reclamar de televisores, celulares, Facebooks e WhatsApps: na melhor das hipóteses, infrutífero.

O que fazer, então? Para começar é preciso repensar as instituições e formas de organização social. As principais maneiras ocidentais de compreender e administrar grupos humanos foram criadas em uma época mais calma, menos informada. A concepção atual de “sociedade” nasceu durante o Iluminismo e se consolidou na primeira metade do século 20, uma época de carruagens, vapores e pombos correio.

Hoje esse modelo está próximo de seu esgotamento. Em uma sociedade de preferências individuais, partidos e sindicatos parecem médias grosseiras, estereótipos que consideram seus membros uma massa uniforme. Os mercados de Adam Smith são tão impessoais quanto as classes marxistas.

A vitória institucional da democracia, evidente pela tentativa de regimes totalitários de se camuflarem dela, disfarça sua vulnerabilidade à corrupção e à manipulação. No ambiente de riqueza de dados a sensação geral é que dá para fazer melhor.

A sociologia contemporânea mostra que a população é composta de subgrupos distintos, marcados mais por afinidade do que por bairro de residência, profissão ou renda familiar. Os membros de cada uma dessas “tribos” urbanas costumam ir ao mesmo tipo de lugar, vestir-se de forma parecida, ter padrões de gastos e viagens proporcionais. Suas escolhas individuais os agrupam em associações comportamentais, dinâmicas.

É nesse ponto que as tecnologias de “Big Data” podem fazer a diferença em políticas públicas. Novas ciências sociais quantitativas usam teorias computacionais para prever dinâmicas e interações sociais, ajudando a criar modelos matemáticos para detectar anomalias, comparar cenários e ajustar variáveis para atender a demandas.

Liberdade e transparência

Pode-se, então, observar o comportamento de seres humanos da mesma forma que se observam formigas ou abelhas? De certa forma, sim. É claro que, ao contrário de formigas ou abelhas, as atitudes humanas não são determinadas puramente por instinto. O pensamento não é observável. Baseado em escolhas pessoais, ele é rico e imprevisível.

Mas tomar milhares de decisões cotidianas dá muito trabalho, e para a maioria das pessoas, a sensação de livre-arbítrio é maior do que a real espontaneidade. Os dados já coletados por alguns experimentos sociais mostram que o desvio dos padrões ocorre muito raramente. A regularidade estatística que abrange a população é verdadeira para quase todo mundo, em quase todo o tempo.

Ao reunir Economia, Sociologia, Psicologia, Matemática complexa, processos de tomada de decisão e grandes bases de dados, novos algoritmos deverão ser capazes de ver além de classes, profissões, bairros e partidos e ajudar a desenvolver uma “datacracia”, que colabore para evitar crises de abastecimento e infraestrutura, orientar investimentos e simular ações de intervenção.

Todo esse poder lembra o domínio aterrorizante de livros como “1984” e “Minority Report”. De qualquer forma ele já é utilizado pela publicidade moderna e por grandes mercadores de informação, como telefônicas, instituições financeiras e supermercados, à revelia ou na ignorância de quem os utiliza. Facebook e Google não são gratuitos, eles comercializam os dados de seus usuários para quem pagar melhor. Está na hora dessa observação toda gerar alguma vantagem social.

Há quem tema que o emprego dessas tecnologias torne a administração pública positivista, impessoal, tecnocrática ou burocrática, minimizando até suprimir o papel dos prefeitos. É um risco, embora eu acredite que administrações bem-intencionadas devam usá-las como consultores técnicos para reduzir gastos desnecessários e criar administrações mais humanas e integradas.

No futuro próximo será possível imaginar uma completa reestruturação do urbanismo, deixando o sistema estático de hoje para criar uma estrutura dinâmica, em que cada recurso – água, alimentos, resíduos, transportes, educação, energia etc – seja integrado a sistemas autorreguláveis, impulsionados por necessidades e preferências públicas.

Mas para isso é necessário garantir que os dados coletados não sejam usados para fins escusos. O poder é grande, e a tentação de abusá-lo, maior ainda. A “datacracia” pode ser meritocrática, burocrática ou tecnocrática, mas essa decisão deve ser tomada por um sistema jurídico e institucional forte, que proteja liberdades individuais ao mesmo tempo que estimule a transparência.

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Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP