Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Debater imprensa é chutar cachorro morto

Certas coisas na vida não se renovam. Por isso digo que debater a postura da
imprensa, em alguns casos, é chutar cachorro morto. Tenho para mim que a mídia
não vai mudar. Ela depende da publicidade e vai continuar produzindo o
espetáculo da vida alheia para vender seu conteúdo jornalístico. Minha modesta
análise diz que a única mobilização a ser feita é na mente das pessoas, para que
estas saibam separar o joio do trigo. Não mais que isso. Mas, como afirmei,
‘Certas coisas na vida não se renovam’. Logo, alguns detalhes ainda pedem
reflexão.


Num passeio por portais de notícia na internet, cruzei com algo que pode ser
chamado no mínimo de hiato. ‘Veja fotos dos cães feios enviados por leitores’,
salientava a chamada do site globo.com.


Sim, é isso mesmo: um concurso online, promovido por uma das maiores redes de
comunicação do mundo, elegendo o cão mais feio do ano. Cogitei até a hipótese de
proclamar o clichê de que ‘gosto não se discute’, mas não foi possível. Chamo ao
menos de inquietante o fato de pessoas quererem tornar pública a estrutura
estética de seus ‘amigos’ do reino animal – pautados, notadamente, numa
pseudo-fama. E o pior: um importante veículo de comunicação ver relevância
pública em noticiar tamanha bizarrice.


O consolo – se é que existe – é que a história não partiu de mentes
tupiniquins. O concurso tem gene nos Estados Unidos, realizado há alguns ano
durante a feira de Sonoma-Marin, em Petaluma, estado da Califórnia. A Globo não
ficou alheia ao pódio estadunidense e resolveu consagrar os quadrúpedes
domésticos brasileiros.


Satisfação ilusória


Não há ética que permeie o jornalismo dizendo que este deva tratar apenas
questões voltadas para a política, economia e afins. ‘Nem só de pão vive o
homem.’ Penso ser comum que pessoas queiram alicerçar parte de seu dia com um
pouco de banalidades – e me incluo nesta lista. No entanto, a maior rede de
comunicação do país talvez possa hierarquizar a informação de melhor forma,
lutando para que o espetáculo não sucumba a questões de maior relevância
social.


É notório que o espetáculo, neste caso, trabalha como espécie de ‘fetichismo’
da informação. Explico. Em busca de notoriedade – esta possivelmente alcançada
caso seu cão seja muito feio –, pessoas sucumbem a tudo o que não for
midiaticamente ‘legal’, alegando que senso crítico é coisa de intelectual
mal-humorado do século passado. O importante é estar feliz e fazer parte do
show.


E aí se cria um fetiche, um desejo imensurável do público de consumir
informações tidas como ‘descoladas’ – e sem nenhum caráter questionador – que
acabam produzindo seres humanos alheios a inúmeras mazelas sociais. A propaganda
é uma só: aparecer vale muito mais do que olhar para o lado. Todos querem
usufruir de uma imagem.


A tentativa parece funcionar. Dias após a publicação da reportagem, o portal
G1 contava com cerca de 30 candidatos para a disputa do troféu feiúra. Ao menos
não restam dúvidas de que, com a ajuda da mídia e do reino animal, é possível
ficar famoso – consumindo uma sensação de satisfação ilusória ao ter seu nome
mencionado abaixo da foto de seu amigo cão. Feio, mas amigo!

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Estudante de Jornalismo, Osasco, SP