Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Democracia direta é tecnologicamente possível

‘Através da rede, das tecnologias digitais, as comunidades indígenas estão, por exemplo, mostrando o seu próprio ser índio no mundo contemporâneo e reforçando a sua própria identidade e cultura’, diz o professor Massimo di Felice sobre as transformações que as novas redes sociais, possibilitadas pelos avanços das novas tecnologias, estão gerando no mundo.

A reflexão que o professor faz é extremamente positiva, tanto do ponto de vista social quanto econômico, para as possibilidades criadas pela internet, que, para ele, é totalmente a favor do local, o que nos aproxima cada vez mais da cultura gerada pelo nosso grupo, pela nossa comunidade, pela nossa família. Com o aumento do acesso a essas redes, vamos nos afastando, aos poucos, das grandes mídias de massa que nos tiram do nosso próprio mundo para nos colocar numa sociedade que não pensa o indivíduo, mas pensa nas pessoas enquanto pertencentes a uma massa. A entrevista concedida à IHU On-Line foi realizada por telefone.

Massimo di Felice é graduado em Sociologia, pela Universita degli Studi La Sapienza, na Itália. É especialista em Teoria e Analisi Qualitativa e doutor em Ciências da Comunicação pela universidade de São Paulo, onde atualmente é professor. É autor de Pensamento indígena contemporâneo e novas formas de conflitualidade social (São Paulo: Editora Xamã, 2002) e Do público para as redes (São Caetano do Sul: Difusão, 2008), entre outras obras.

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A internet hoje parece caminhar para uma democracia de acessos, ou seja, serviços que antes eram difíceis de trabalhar e caros, hoje são oferecidos na rede de uma forma fácil e gratuita. Quais os impactos trazidos pela tecnologia digital na democracia de nosso mundo contemporâneo?

Massimo di Felice – A comunicação digital tem um impacto muito forte na relação entre o indivíduo e o território, porque ela altera a forma de construção e de repasse das informações. Desde a antiga Grécia até o surgimento da TV, a forma de comunicação tradicional de repasse de informações é feita unidirecionalmente e analogicamente, baseada na emissão de uma mensagem por um emissor, recebida por um público que não é passivo completamente, mas que, tecnologicamente, não pode emitir mensagem. Com a comunicação digital nós temos, pela primeira vez na história da humanidade, a alteração desse fluxo comunicativo, a criação de uma forma de comunicação em rede onde todos os indivíduos são, ao mesmo tempo, emissores e receptores, ou seja, todos nós podemos criar mensagens e distribuí-las em rede. Esta é uma grande revolução dentro do conceito da democracia, pois altera profundamente as relações entre público e instituições e a forma de gerar e redistribuir informações.

Do ponto de vista da esfera pública, que está ligada, como diz Habermas, ao indivíduo racional, os sujeitos são informados pela imprensa e passam a opinar sobre os assuntos que estão na pauta da sociedade. Esta opinião é racional e ligada ao mundo das formas escritas. Ela acontece onde todos os indivíduos podem tranqüilamente expressar conteúdo, desenvolver narrativa e opinar sobre qualquer assunto e postar para todos. Então, inclusive o conceito de esfera pública se altera profundamente e, sobretudo, se cria uma relação onde qualquer indivíduo pode dialogar com os demais, criar conteúdo e experimentar novas formas de participação on-line.

Isso está acontecendo no mundo todo, mas é ainda mais forte no Brasil. Nós temos uma divisão social muito grande, onde a esfera pública estava limitada aos grandes meios de comunicação. O impacto dessa grande transformação comunicativa é visível no Brasil e está alterando profundamente a esfera pública e incluindo sujeitos que historicamente estavam às margens, como os indígenas, os jovens da periferia e todos os novos tipos de atores sociais.

Até pouco tempo a Espanha, um país de primeiro mundo, tinha o maior número de horas de acesso à internet por usuário. Hoje, o Brasil, um país ainda em desenvolvimento, é o país que mais tempo navega na rede. O que significa essa mudança?

M. di F. – Esta mudança, no caso do Brasil, pode significar muita coisa. Eu uso a expressão ‘pode’ porque obviamente as mudanças não estão somente ligadas a uma transformação tecnológica, mas também a um conjunto de outros elementos que não necessariamente estão ligados à tecnologia, como, por exemplo, o nível de instrução e o nível de acesso ao processo educativo formal. No caso do Brasil, isso é ainda muito difícil, pois boa parte dos jovens brasileiros não tem acesso à universidade. Isso significa que, portanto, possuir acesso a uma comunicação digital, interativa, que permite ter um poder enorme de se expressar e redistribuir isso ao mundo inteiro na rede nasce do outro lado, só com indivíduos com nível de educação formal ou médio alto, e cria um grande processo de transformação. A internet pode ajudar fortemente o processo de ingresso de parte da população jovem do Brasil na universidade, de uma forma muito maior e radical do que as propostas que foram feitas com as cotas, por exemplo.

Além disso, a internet pode desenvolver um projeto interessante de participação e de colaboração. Esse é um elemento fundamental. É necessário que sejam feitas reflexões sobre esta passagem de um tipo de tecnologia comunicativa da democracia para um tipo de psicologia comunicativa da colaboração. É uma diferença bastante grande. Todo o conceito de democracia que nós temos construído na história é passado. A tecnologia digital cria uma nova forma de construção do processo democrático, que atravessa as tecnologias informativas, e os indivíduos podem, colaborativamente, criar redes participativas, decidir em que projetos atuar e interagir a partir de uma ação direta sobre o território sem mediação e ações intermediárias. Muda praticamente tudo.

Isso não é uma novidade, pois se observarmos o impacto que teve a tipografia, quando Gutenberg criou a impressão dos livros, veremos que ela iniciou um processo de incremento de acesso às informações com choque enorme não somente na organização e estrutura social, mas também promoveu uma transformação radical no conceito de democracia. Existe, portanto, uma clara relação na história entre a forma de acesso às informações e a tecnologia de distribuição das informações e o modelo democrático. Estamos vivendo um período em que essa relação está se modificando de novo.

Como se constitui essa ciberdemocracia? A partir dela é possível pensar numa realidade com cada vez menos excluídos digitais?

M. di F. – Do ponto de vista histórico imediato, é extremamente rápido. Os últimos dados mostram que o Brasil tem um incremento de acesso à internet enorme. Podemos comparar o que isso significa do ponto de vista histórico com a invenção do livro, por exemplo. Quanto tempo passou da sua invenção até o acesso de massa? Foram séculos, pois o acesso de massa ao livro surge somente com o comércio da metade do século 19 na Europa. Nós temos séculos e séculos entre a invenção da tecnologia ao livro e o acesso público de fato a isso. Agora, se pensarmos quanto tempo passou da invenção do telefone ao acesso público do telefone, veremos que temos aí um século e meio, mas um tempo ainda menor do que o acesso ao livro. Se nós fizermos uma relação à invenção da internet e a sua difusão de massa, veremos que o dado está cada vez mais reduzido. Nós já temos amplo acesso a ela, mas em poucos anos esse dado estará ainda mais quantitativamente e qualitativamente alterado. Em várias cidades do interior de São Paulo, já é possível acessar a internet em qualquer lugar, ou seja, a tecnologia está resolvendo o problema do acesso.

O problema não é tanto o acesso, mas o que fazer com a rede. Esso é a grande possibilidade para a revolução da democracia. A nova democracia que está sendo criada muda completamente a forma de participação do indivíduo na sua cidade. A mídia de massa, analógica, informava o indivíduo, fazia com que ele somente recebesse a informação e, portanto, e só se tornava ativo como cidadão na medida em que fosse informado pelas mídias, que era o instrumento que determinava a inclusão na esfera pública. A rede digital, a ciberdemocracia, cria uma outra forma de participação, completamente diferente. Pois o indivíduo não somente usa a rede para acessar as informações, mas pode ser editor, criador de informações, além de fazer a sua distribuição na rede. Então, cria uma forma ativa de cidadania, uma forma de democracia direta. Norberto Bobbio, um dos principais estudiosos das ciências políticas, no texto O futuro da democracia (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992), disse claramente que a democracia direta era algo impossível, utópico e seria possível somente no dia em que existir uma máquina que permitiria que o indivíduo possa, com um simples apertar de um botão, distribuir o próprio parecer, a própria idéia, o próprio voto, em tempo real para a população inteira. Obviamente, quando Bobbio disse isso não existia a comunicação digital. Hoje, isso é possível. Portanto, pensar uma forma de democracia direta é algo que hoje pode ser tecnologicamente possível.

O que nos ensina a economia da abundância? Como a economia da gratuidade está inserida neste contexto?

M. di F. – A economia da abundância também está ligada à economia da escassez, porque a abundância remete a um processo de acesso a um conjunto de possibilidades de expansões e também de incremento de produções. Nós sabemos que a distribuição desse incremento de produções não é generalizada. Do ponto de vista da comunicação, nós passamos da sociedade dos grandes números, que é a sociedade da mídia de massa, onde temos uma grande produção de informações por grandes centrais emissoras, para um tipo de comunicação de economia pan-comunicativa. Neste, essas emissões geram um ciclo de produção de informações enorme e passa a distribuí-las na rede, criando uma grande quantidade de informações. Eu diria que, do ponto de vista econômico, a comunicação digital pode alterar o próprio conceito de valor.

Do ponto de vista de criação de possibilidades de acesso a informações por parte da população e, portanto, de processo de criação de lucro para todos os indivíduos, é importante pensar que hoje qualquer processo produtivo, de sucesso econômico, está ligado ao acesso às informações. É importante pensar que até mesmo do ponto de vista econômico o digital oferece uma grande transformação.

As grandes mídias estão cada vez mais perdendo espaço no cotidiano das pessoas. Há 20 anos, tínhamos muito menos opções e uma concentração grande de audiência. Hoje, cada um faz suas mídias. O que se aprendeu com esse processo?

M. di F. – Isso está alterando o processo de sociedade, a forma de não somente assistir às informações e de recebê-las até mesmo no imaginário coletivo – que antes era criado pela mídia de massa. O cinema antes era o responsável pela criação do imaginário coletivo. Hoje nós temos a passagem para um outro tipo de imaginário, chamado imaginário objetivo, no qual os indivíduos interagem com mídias pessoais e possuem um tipo de imaginário pessoal. É a passagem da mídia de massa para a personal mídia. Isso cria um pertencimento à sociedade extremamente diferente da sociedade que cria um imaginário coletivo. Com isso, os laços sociais passaram a se enfraquecer, o que não é necessariamente um mal. Na medida em que novas formas de coesão passam a existir, novos tipos de laços são gerados, que são laços temporários ou ocasionais. Por exemplo, as relações sociais dos jovens que nasceram já num contexto digital não são mais somente locais. Através dos sites e das arquiteturas digitais sociais, os jovens criam laços que são somente territoriais e, portanto, criam um novo tipo de afetividade que não é necessariamente territorial. Obviamente isso tem implicações muito grandes e transformações qualitativas. Existem teóricos que dizem que a sociedade contemporânea é uma sociedade de enfraquecimento, outros dizem que é uma sociedade que está reorganizando as suas formas de relações e laços sociais e, assim, estão criando novos tipos de interação social que é tecnológica. Esta é uma situação social na qual o indivíduo passa a interagir com os demais através das mediações compostas pelas tecnologias sociais.

Em 28/8/2008 entrevistamos a primeira índia formada em Direito no Brasil. Ela fala que os índios estão se apropriando das mídias, principalmente digitais, mas sem perder a sua identidade. Como o senhor analisa a questão das identidades a partir dessa realidade da comunicação digital e essa ‘tomada da palavra’ pelas minorias, agora não só pensando nos indígenas, que permite uma circulação de forma mais autônoma pelos conteúdos disponibilizados na rede?

M. di F. – Esse é um dos elementos mais visíveis de uma sociedade que passa a criar uma forma comunicativa digital e é diferente das formas de comunicação não digitais anteriores. Existe uma presença hoje muito grande das comunidades indígenas on-line, que estão fazendo uma ruptura com a história da comunicação no Brasil, na medida em que os povos indígenas nunca tiveram antes acesso às mídias, mas sempre foram objetos de interpretações da mídia de massa, e hoje podem produzir diretamente o seu conteúdo. Existem redes de indígenas de várias comunidades indígenas. Numa dessas atividades, há vários escritores indígenas na rede que se comunicam entre si e, através de uma proposta que fizemos, esses escritores enviaram seus textos e uma editora na Europa publicou o livro deles. Isso criou uma ruptura do cerco cultural que os índios no Brasil tiveram no decorrer do processo de comunicação analógica.Esse é um exemplo claro das transformações. É importante sublinhar, do ponto de vista identitário, que a internet é a favor do local. A diferença dela para as mídias de massa é que estas afastam o indivíduo do seu território. A rede é absolutamente uma forma de imersão e uma grupalidade, porque permite acessá-la de qualquer canto do mundo, sem negar a sua localidade. Através da rede, das tecnologias digitais, as comunidades indígenas estão, por exemplo, mostrando a sua própria maneira de agir no mundo contemporâneo, reforçando a sua própria identidade e cultura.