Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Dez palavras na ordem do dia

Desde adolescente me encanta a viagem das palavras. Meus colegas de seminário – temos uma confraria de ex-seminaristas que, extraviados por três décadas, agora se reúnem periodicamente em Florianópolis – haverão de lembrar que um certo professor de latim considerava ‘rapaz’ designação inadequada para jovem ou moço, pois em latim rapax é ladrão.


De outra parte, Ariano Suassuana recorda episódio em que um sujeito quis dar nome de Raposa à filha recém-nascida e ouviu o padre negar o batizado porque se recusava a dar nome de bicho à menina. O pároco ficou sem resposta diante do contra-argumento do pai da criança: ‘Mas quantos papas se chamaram Leão? Por que Leão pode e Raposa não?’.


Mas – ó dor! – pertenço a uma geração que é a última dos moicanos para a etimologia. Nos meus mais de trinta anos como professor testemunhei um grande desinteresse pelo berço das palavras.


Desde 1993, porém, venho dando vazão a este gosto pela viagem das palavras, na coluna semanal de etimologia que assino na revista Caras. O trabalho persistente de pesquisa e o cuidado em seguir a recomendação de Santo Tomás de Aquino para evitar que os artigos sejam extraviados (‘tudo o que é disperso, acaba se perdendo’), leva-me a periodicamente reunir os verbetes tal como eu os escrevo (na revista, eles saem quase todos resumidos).


Foi assim que surgiu o livro De onde vêm as palavras, atualmente em 15ª edição, com a 16ª em preparo e já em vias de sair com cerca de 300 novos verbetes, entre os quais mensalão, neologismo que tomou conta do português.


Borges, etimólogo


Provavelmente. quem fez o primeiro registro impresso de mensalão foi a jornalista Renata Lo Prete, na Folha de S. Paulo, em 6 de junho de 2005), que o ouviu do então deputado Roberto Jefferson.


Este artigo faz considerações sobre palavras extraídas de reportagens que têm tido como tema solar o mensalão. São as seguintes, além do dito-cujo: acuar, beca, crime, desaforo, embargar, recuar, sentença, toga e tribunal. Oportunamente voltarei com outras.


Mas, antes, acolho a definição que de etimologia faz o escritor Jorge Luís Borges, justamente por seu lado maravilhoso:




‘Os implacáveis detratores da etimologia argumentam que a origem das palavras não ensina o que elas agora significam; os defensores podem replicar que ensina, sempre, o que elas agora não significam. Ensina, verbi gratia, que os pontífices não são construtores de pontes; que as miniaturas não estão pintadas com mínio; que a matéria do cristal não é o gelo; que o leopardo não é um mestiço de pantera e de leão; que um candidato pode não ter sido cândido; que os sarcófagos não são o contrário dos vegetarianos; que os aligatores não são lagartos; que as rubricas não são vermelhas como o rubor; que o descobridor da América não foi Américo Vespúcio e que os germanófilos não são devotos da Alemanha’.


Vote-buying


Se o leitor procurar o verbete ‘mensalão’ nos dicionários, não o encontrará. Apesar da nova tecnologia que nos permite atualizar os dicionários por meio digital, este recurso ainda é pouco utilizado.


Temos versões eletrônicas dos dicionários mais consultados, mas é possível fazer muito mais: as editoras podem manter equipes que os atualizem permanentemente. Bom exemplo encontramos na versão digital do Dicionário Caldas Aulete, fornecida gratuitamente mediante pequeno cadastro (ver aqui). Entre as iniciativas, existe a possibilidade de o consulente adotar uma palavra. Várias empresas já o fizeram. E ele está aberto também a pessoas físicas.


Embora cada vez mais escassos entre nós os estudos etimológicos, eles são necessários, pertinentes. Lançam luzes sobre o berço das palavras, deslindam os caminhos que percorreram para chegar até nós, às vezes não apenas mudando de significado, mas significando o contrário do que designaram na origem.


Mensalão veio de mensal, que chegou ao português no século 18, segundo registro do padre Rafael Bluteau, o mesmo que encomendou a criação da palavra pirilampo para substituir caga-fogo ou caga-lume, aceitando mais tarde o eufemismo vaga-lume.


Mensal veio do latim tardio mensualis, que provavelmente mesclou mês (mensis) e medida, feminino de medido (mensus). No português, tornou-se adjetivo de dois gêneros. Mas, exatamente no século 21, foi transformado em substantivo para designar suborno periódico a parlamentares.


É impossível que nenhum jornalista tenha ouvido a palavra antes de Renata Lo Prete registrá-la pela primeira vez, pois o neologismo estava na boca de diversos parlamentares cujas ações eles cobriam.


Utilizada na matéria que desvendou o esquema da organização criminosa denunciada pelo procurador-geral da República ao STF, a palavra ganhou também a mídia internacional, dando trabalho aos tradutores.


Redatores de países em que o espanhol é a língua oficial, adotaram mensalón. No inglês, virou big monthly allowance (grande pagamento mensal) e vote-buying (compra de votos. O prestigioso jornal francês Le Monde referiu em meio a expressões insólitas de reportagens sobre o governo Lula, tais como scandale de corruption, um certo `mensalao´, mensualité versée à des députés alliés au PT, révélé en 2005.


Interesses do povo


Professores de Direito ensinam que os juízes julgam o que está nos autos. E que o que está nos autos, está no mundo. O que não está nos autos, não está no mundo.


Palavras muito usadas no Direito oferecem vestígios de que nasceram em berços que lhe deram sutis complexidades, variando muito de significado ao correr dos séculos, de que são exemplos as que seguem:


** Acuar: do latim vulgar acculare, acuar, isto é, pressionar animal ou pessoa pelo cullus, designação popular equivalente ao erudito proktós grego, de onde proctologia, especialidade da gastroenterologia que trata das patologias do reto e do ânus. Acuado, o animal protege o ânus, afinal, como diz o provérbio, igualmente chulo, ‘quem tem *, tem medo’. Em sentido conotativo, prestou-se a designar o ato de pressionar alguém. O vocábulo chulo aparece embutido também em cueca, cueiro e em recuar.


** Beca: do judeu-espanhol beca, pensão, pagamento do estudante, com origem no hebraico bécah, moeda utilizada em Israel, no valor de 50% de um siclo. Na formatura, recebendo a beca, laureado com o diploma, estava pronto o baccalaris, o bacharel. Pode ter havido influência dos italianos beca, bolsa de estudos, e bicco, ponta, por força do bicos do chapéu de formatura e das pontas do traje do formando. Como a palavra ‘toga’ passou a designar (preferencialmente) as vestes dos juízes no exercício de suas funções litúrgicas, a palavra ‘beca’ a substituiu para indicar as vestes de advogados, defensores públicos, promotores etc., estendendo-se também, não mais aos formandos de Direito apenas, mas aos formandos de qualquer curso.


** Crime: do latim crimen, crime, delito, mas originalmente designando apenas acusação, com raiz no grego kríno, separar. Separado o acusado, era submetido ao krites, juiz, para o krima, julgamento. Critério tem origem semelhante.


Karl Marx dá a entender que o crime minora o desemprego, mantendo ocupados, além dos criminosos, policiais, promotores, advogados, juízes, desembargadores, carcereiros, professores de direito, legisladores, sem contar engenheiros e trabalhadores que constroem prisões.


** Desaforo: do latim forum, praça pública, lugar onde se tratavam assuntos de interesse público ou particular e ao redor do qual ficavam os templos e tribunais. Conflitos podiam ser resolvidos ali, antes ainda de serem formalizados os processos, mas quando o ato era muito violento, seu praticante ficava privado de foro, daí o des, que em português indica negação e entrou na formação de desaforo.


** Embargar: do latim vulgar imbarricare, pôr barra, embaraçar, estorvar. O prefixo ‘des’ volta a aparecer em desembargador, que designa o cargo de juiz de tribunal de alçada ou de apelação, cujo ofício consiste justamente em desembaraçar processos, levando-os a uma solução. Nem sempre, porém, os embargos podem ser resolvidos por juízes, como os ‘embargos de terceiro’, no capítulo 113 do célebre romance de Machado de Assis, Dom Casmurro, em que o marido, ao voltar do teatro, surpreende a esposa infiel com o seu melhor amigo e este lhe diz que veio para tratar de uns embargos.


** Sentença: do latim sententia, sentença, sentimento, de sentire, sentir, designando modo de perceber, impressão, opinião, idéia. O sentimento pode nascer também do olfato, de que é exemplo a expressão ‘não me cheira bem’. A idéia é que o Mal fede e que o Bem exala odor agradável. E a igreja católica refere vários santos que tinham odor de santidade.


** Recuar: do latim vulgar reculare, recuar, isto é, literalmente trazer o cullus (ânus) para trás.


** Toga: do latim toga, veste comprida, manto, do latim tegere, cobrir. Passou a designar a capa que os juízes utilizam e, por metáfora, o seu poder. Mas toga designa também a veste talar, de cor negra, usada por promotores, defensores públicos, advogados etc., na prática de alguns atos processuais.


** Tribunal: do latim tribunale, declinação de tribunal, designando originariamente o estrado onde ficavam os juízes, protegido por barras de madeira que o separavam do recinto onde ficava o povo na antiga Roma. Veio daí a expressão ‘levar às barras do tribunal’. Passou depois a indicar as cadeiras onde sentavam os magistrados e, depois, o prédio e a própria instância jurídica, formada por colegiados, sendo a sentença extraída por maioria. A origem remota é a palavra tribus, tribo, divisão do povo romano e também dos judeus. No Brasil, os tribunais trazem crucifixos afixados nas paredes. O escritor João Uchôa Cavalcanti Netto dá curiosa explicação ao costume no livro O Direito, um mito:




‘Durante a Inquisição, indispensável se converter ao cristianismo para permanecer judeu. Essa, a técnica do Direito em relação ao fraterno: aderir para ludibriando vencer. E antevendo no Cristo o apocalipse do Direito, Lúcifer abarrotou de crucifixos os tribunais do mundo inteiro. Nisso, porém, antes desvendou o irremediável paganismo do Direito: porque o símbolo só entra onde não se consegue introduzir o simbolizado, a cópia existe para se prescindir do original e o retrato se por um lado recorda por outro grita que o retratado está ausente’.


Os primeiros juízes romanos, em número de três, atuavam em tribunais. Eles representavam as três tribos primitivas da antiga Roma. O lugar onde exerciam o ofício veio a denominar-se tribunal porque eles se sentavam num estrado – tribunal, em latim – e distribuíam as despesas entre as tribos, originando também outras palavras, como tributo, tribuna, tribuno etc.


Os tribunos atuavam aos gritos, diante dos juízes, defendendo os interesses do povo. Tal função foi elitizada com os aperfeiçoamentos do Senado romano. E a principal qualidade de quem atuava nos tribunais ou no Senado passou a ser o desempenho retórico que tinha no lugar que lhe era destinado para falar, a tribuna. Com o surgimento da imprensa, vários jornais adotaram o nome de tribuna em sua designação, com o fim de deixar claro que defendiam interesses do povo e não de grupos hegemônicos.


Voltaremos ao assunto quando possível.