De tempo em tempo, retomo o tema que, no OI, já rendeu, ao longo dos anos, inúmeros artigos. O lote mais recente se deu, em quatro versões, sob o título de ‘Cultura & Tecnologia: um conflito interessante’, no período de 2/10 a 23/10/2007.
A recorrência ao tema, afora o fato de ser uma das áreas em que atuo profissionalmente, na disciplina ‘Linguagem impressa e audiovisual’, provém de profundas preocupações quanto ao futuro que pretendemos construir. Sim, a responsabilidade maior de quem pensa sobre as questões da vida diz respeito ao futuro, pois o passado foi vivido e o presente já está em curso com sua própria dinâmica.
A única temporalidade que se nos afigura em aberto é o futuro. Para tanto, a única possibilidade de se promover alguma intervenção no devir é firmar posições, conceitos e observações críticas no presente contínuo. É urgente que compreendamos importância igual da prevenção: seja para exames quanto a doenças graves do corpo, seja para diagnósticos quanto a deformações culturais que afetam a mente.
Estruturação do pensamento
O problema enfrentado por aquele que decide tratar de questões a envolverem a relação ‘cultura e tecnologia’ é o de subordinar à armadilha de uma lógica binária um recorte maniqueísta no qual a tecnologia seja vista como força redentora ou como agente destrutivo. Obviamente, os dois olhares são deformadores. Cabe, sim, ter a clareza no tocante à diversidade dos campos de sua intervenção. Em alguns, a tecnologia é remédio; em outros, pode ser veneno.
Retirar da potência da tecnologia o olhar da relativização é um risco de graves proporções. Como recusar os benefícios trazidos pela tecnologia em áreas de intervenção no corpo, em prospecções do universo, em soluções para construções urbanas. Enfim, a tecnologia, na ciência médica, na astrofísica, nos múltiplos campos da engenharia e em outras esferas análogas, só pode merecer o aplauso de quem se encanta com a capacidade da inteligência humana. A área, porém, na qual se oferecem sérios impasses e problemas é aquela referente ao terreno da relação linguagem / comunicação, ou seja, a estruturação do pensamento.
Tempos da subjetividade
Quanto a preocupações relacionadas a radicais transformações empreendidas pela oferta consecutiva de novas ferramentas comunicacionais, nas quais predomina o apelo audiovisual sobre o código verbal e impresso, nada melhor do que sugerir a leitores interessados ampla abordagem formulada pelo teórico francês Jean Baudrillard. Para se citarem apenas algumas obras: Simulacros e simulação (Lisboa, Relógio D’Água, 1991 – publicação original, em 1981]); A ilusão do fim: ou a greve dos acontecimentos (Lisboa, Terramar, 1992); O crime perfeito (Lisboa, Relógio D’Água, 1996 – edição original, em 1995) e Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem (Porto Alegre, Ed. Sulina, 1997).
Claro, não ficam ausentes referências a outros teóricos que, sobre a questão, centraram seu foco crítico, a exemplo de Pierre Bourdieu, Noam Chomski, Edgar Morin, Paul Virilio, Umberto Eco e, mais recentemente, Philippe Dubois, além dos escritos de Ciro Marcondes Filho, referência em artigo anterior (OI – edição de 27/05/08).
Em resumo, o problema de fundo é: como se dar conta da avalanche de apelos e estímulos sensoriais das imagens, dada a multiplicação de ofertas de telas, nas mais diferentes polegadas, prometendo sintonia rápida, atualização em ‘tempo real’ e outras quimeras mais? Há um aspecto para o qual poucos destinam sua atenção: se é verdade que a tecnologia encurta a duração de tarefas da objetividade cotidiana, não é menos verdade que, para outras tantas, ela rouba, via telas disponíveis, tempos da subjetividade nos quais o ser de cada um teria a possibilidade de avaliar, repensar, imaginar, conjeturar, ponderar e interpretar situações vividas e outras tantas por viver.
O alerta de Philip Roth
Há, enfim, um conflito posto pelos avanços inquestionáveis da tecnologia: de um lado, prospera a emancipação do corpo; de outro, prolifera a tirania predadora da subjetividade.
O que se atesta, na prática cotidiana, é, nos mais jovens, um progressivo estado de desorganização mental, dispersão cognitiva e apagamento da memória. As telas invadem. A mídia (principalmente eletrônica) cria invasão, como gera evasão. A mídia tanto filtra quanto infiltra. O resultado é a erosão do sentido. Há muito se sabe que o apelo audiovisual, para segmentos de pouca sedimentação do código verbal e impresso, produz excitação egóica, exacerbação idolátrica, dispersão cognitiva, fragmentação conteudística e aceleração motora. Políticas públicas e privadas que apostam no conhecimento por telas terão de responder, no futuro, por atos de deformação geracional.
Em entrevista concedida ao caderno ‘Mais!’ (Folha de S.Paulo – 08/06/08), o escritor norte-americano Philip Roth, indagado a respeito de onde estão os leitores hoje, fez a seguinte declaração: ‘Onde? Olhando para as telas de seus computadores, as telas da televisão, dos cinemas, dos DVDs. Distraídos por formatos mais divertidos. As telas nos derrotaram.’
Cultura impressa é insubstituível
Perguntado sobre como essa concorrência poderia ser combatida, Roth sentenciou: ‘Não sei. Não me coloco essa pergunta seriamente. Apenas posso lhe dizer o que aconteceu: que as telas venceram a batalha sobre as páginas.’ Ainda convidado a opinar sobre o ‘livro eletrônico’ (Kindle) recém-lançado nos EUA, Roth respondeu:
‘Ainda não o vi, mas duvido que tome o lugar de um objeto como o livro. A solução não é transpor livros para telas eletrônicas. Não é isso. O problema é que o hábito da leitura desapareceu. Como se, para ler, precisássemos de uma antena e ela tivesse sido cortada. O sinal não chega mais. A concentração, a solidão, a imaginação que o hábito da leitura exige… perdemos a guerra. Dentro de 20 anos, a leitura será algo restrito a uma seita.’
Sem disfarçar um certo tom irônico, o escritor arrematou:
‘(…) Ler será hobby de uma minoria. Alguns criarão cachorros ou peixes tropicais e outros lerão, como é o caso da leitura de poesia, hoje. Existem poetas, eles são publicados, mas os leitores de poesia são uma minoria. É isso o que vai acontecer.’
O caminho sensato, dependendo dos esforços de setores organizados da sociedade civil, deverá indicar que, tão importante quanto discutir a preservação do meio ambiente, é indispensável e inadiável refletir sobre a estimulação da inteligência da população. Sem qualificação da consciência crítica, para a qual a cultura letrada e impressa é insubstituível, pouco avançaremos nos cuidados com a natureza. A consciência é resultado do modelo de cultura. Ainda temos como reverter um quadro cujas tintas podem ser melancólicas.
******
Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (Rio de Janeiro)