Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Drummond, ‘twitteiro’ arrependido

O esforço para divulgar uma causa ou influenciar o rumo dos acontecimentos foi potencializado pelo surgimento da internet, que multiplica o acesso a notícias, opiniões e imagens na velocidade do Twitter, dos blogs e das mensagens por email. No tempo dos jornais de papel e do correio tradicional, essa tarefa era custosa: o divulgador dispendia tempo e energia e esbarrava na concentração dos meios nas mãos de poucos.

Quem é que podia ter um jornal, mesmo que pequeno, a não ser empresários ou facções políticas? Quantos dias levava uma carta para chegar ao seu destinatário e, dali, ter seu conteúdo encaminhado a outros indivíduos?

Se fragmentou a visualização dos interesses e diminuiu o poder das grandes causas, a pós-modernidade e seu veículo de comunicação por excelência liberaram as capacidades de expressão e propaganda de milhões de indivíduos. A questão do quanto isso coopera para a melhoria geral da vida humana ainda está por ser medida, mas um padrão foi rompido.

A internet também aumentou consideravelmente a sobrevivência do que é publicado. Os meios em papel dificultavam enormemente a pesquisa e praticamente impossibilitavam a reprodução. Um dos chavões mais repetidos era o de que um jornal durava um dia e as revistas, uma semana. Estas talvez um pouco mais, se colocadas na antessala de um consultório ou no sofá da barbearia. Os jornais comumente seguiam para as feiras e mercados, e eram os preferidos para embalar peixes.

O poeta twitteiro

Foi justamente nos primeiros anos do jornalismo brasileiro que um poeta em início de carreira suou para divulgar o lançamento de seu primeiro livro. Integrante da segunda geração do modernismo, Carlos Drummond de Andrade editou e colocou na praça, por conta própria e risco, a obra Alguma poesia, que está completando 90 anos.

Em 1930, os modernistas já tinham provocado furor com a Semana de 22 e se encontravam em plena revisão de suas propostas estéticas, depois de arrasarem com os excessos dos parnasianos e outros adeptos de fórmulas antiquadas. Drummond hesitou muito até lançar seu livro, que ainda incorporou modelos como o poema-piada, já criticados então por figuras de proa do movimento – Mário de Andrade foi uma delas. Ainda assim, Alguma poesia teve ótima aceitação nas hostes modernistas e acirrou, por outro lado, a polêmica acerca do célebre poema No meio do caminho.

Apesar – e até por causa – das críticas ferozes dos tradicionalistas, a controvérsia rendeu a Drummond certa notoriedade. Mas, instintivamente, ele sabia que precisava de mais se quisesse se firmar como um literato importante, à altura do potencial que reconhecia em si próprio de maneira relutante.

Na época, a exemplo de muitos escritores, exercia a profissão de jornalista. E se aproveitou disso para propagar as críticas boas – e as más – que o livro ia recebendo. Isso fica nítido na apresentação de Eucanaã Ferraz à reedição especial de Alguma poesia lançada pelo Instituto Moreira Sales em 2010 para celebrar as nove décadas do livro.

Em um trecho de entrevista reproduzido por Ferraz, Drummond confessa, um tanto envergonhado, a ação deliberada que adotou para semear no jornal Minas Gerais tudo o que se dizia a respeito de Alguma poesia:

‘Apesar de tímido, eu era assanhado, queria muito aparecer. Quando se publicava uma coisa sobre meu livro (…), eu transcrevia todos os elogios. Uma coisa que depois eu fiquei com uma vergonha enorme. Mas publicava tantos os elogios quanto os ataques. Publiquei uma descompostura que o Albuquerque fez em mim (…). Era uma coisa até escandalosa de minha parte, eu não sei onde é que eu estava com a cabeça para fazer aquelas bobagens.’

 

Lendo essa declaração em perspectiva, e já acostumados aos hábitos auto-promocionais de agora, podemos pensar em Drummond como um blogueiro ou twitteiro primevo. Arrependido, entretanto, de sua ousadia, que pinta com um tom antiético. Se pudéssemos consolá-lo, poderíamos dizer que pelo menos fez publicar as críticas ao seu livro, o que não é nada usual hoje em dia.

A morte de Saramago

A aceleração das mudanças tecnológicas resultou em uma situação irônica para o austero escritor português José Saramago, morto em junho último. Socialista aguerrido, Saramago observava o processo econômico capitalista e suas implicações sócio-culturais com desconfiança, manifestando-se preocupado com qualquer possibilidade de manipulação dos seres humanos. Nos últimos anos de vida cedeu à internet e até publicou um blog.

E foi igualmente num blog da editora Companhia das Letras, da qual é fundador e editor, que o crítico Luiz Schwarcz deu um depoimento sobre o amigo de mais de vinte anos:

‘Acabo de ver o escritor José Saramago morto. Quando a notícia apareceu na internet, liguei pelo Skype para Pilar [esposa de Saramago], que sem que eu pedisse me mostrou José deitado na cama, morto. Tenho falado com Pilar quase todos os dias. Sabia que não havia chance de recuperação, o destino de José já estava traçado, os médicos não acreditavam mais na possibilidade de um novo milagre, como o do ano passado, quando venceu, contra todas as expectativas, os problemas pulmonares que o acometiam.’

O humano permanecerá

Como toda novidade, a internet desafia os chamados valores tradicionais. E, por esta razão, dispara alarmes para avisar dos riscos de desumanização provocados por uma tecnologia nascente e o caudal de mudanças políticas e culturais que ela implica.

No fundo, entretanto, a rede mundial é apenas mais uma novidade, como foi a domesticação do fogo, a invenção da roda, o surgimento da imprensa, a criação da máquina a vapor e dos aviões, para não falar de tantas outras. É claro que a internet permite, em âmbito planetário, armazenar, manipular e transmitir um volume de informação nunca antes possível.

Um dia, porém, será superada por outras possibilidades de comunicação. Nesse momento, o que restará do que chamamos valores humanos?

Muito mais do que se imagina.

Esse dilema da desumanização é falso. E é do tipo que acompanha toda aventura humana, especialmente aquelas radicais. Deixando de lado os excessos que sempre nos acompanham, o avanço da tecnologia traz sempre a revelação da nova etapa de um projeto ambicioso, do qual desconhecemos as razões últimas. Agimos pelo impulso de irmos mais além, sem sabermos por quê. É o que diz o personagem do desenho animado: ‘Ao infinito e além!’ Algo que é intrinsecamente humano permanecerá sempre – logicamente em planos cada vez mais insondáveis e amplos.

Não se pode deixar de recordar, a propósito, aquela passagem dos Lusíadas em que o Velho do Restelo brada contra a partida das naus portuguesas. E ao final conclui: ‘Nenhum cometimento alto e nefando / por fogo, ferro, água, calma e frio, / deixa intentado a humana geração. / Mísera sorte! Estranha condição!’

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Da Agência Senado