[Leia aqui Parte 1, Parte 2 , Parte 3, Parte 4, Parte 5, Parte 6, Parte 7, Parte 8 e Parte 9]
A primeira década do novo milênio tem sido marcada como a era da internet, da interatividade, a década da implantação da TV digital, da banda larga, das redes sociais, da popularização da TV por assinatura. É o tempo da convergência das mídias. Se nos anos 90 se imaginava que o PC iria incorporar a televisão em sua tela, o fenômeno tem sido exatamente o contrário: o conteúdo da internet está sendo descortinado em telas com mais de 40 polegadas dos televisores que continuam fixados em pontos estratégicos das casas dos brasileiros.
Se a tecnologia avançou significativamente, a programação televisiva nem tanto. A partir do ano 2000, aquilo que já estava disseminado nos Estados Unidos e parte da Europa chegou ao Brasil: os reality shows. O primeiro foi No Limite, produzido pela Globo a partir do original Survivor. A partir de No Limite, pessoas comuns tornaram-se celebridades do dia para a noite. O segredo desse tipo de programa está na exposição da intimidade das pessoas. O voyeurismo está em alta. Depois de No Limite, surgiram diversos programas similares, como Casados Artistas (SBT), Big Brother (Globo), Fama (Globo), Ídolos (SBT/Record) e A fazenda (Record), que lançaram novas celebridades. Celebridade é como define o historiador americano Daniel Boorstin uma pessoa “famosa por ser famosa, e ponto final”. Exceto pela introdução dos reality shows, pouca coisa mudou na programação da televisão brasileira desde o fim da Rede Manchete e surgimento da Rede TV!
As telenovelas continuam sendo o carro-chefe da Globo, oscilando entre a estética típica dos anos 60 (dramas ambientados no Oriente, como O Clone e Caminho das Índias) e o cotidiano carioca, como nas tramas de Manoel Carlos. Novidade nesse campo, só o ingresso da Record na teledramaturgia. Luciano Huck virou animador das tardes de sábado na Globo, Faustão está mais magro, porém contando as mesmas piadas. Silvio Santos, aos 80 anos, continua se distraindo com seu programa dominical e perguntando “quem quer dinheiro?”. Pânico na TV, desde o surgimento, permanece elevando a audiência da Rede TV e o CQC, na Band, se apresenta como novidade criativa no humor.
O poder de pautar o público
Na cobertura esportiva, a Record vem obtendo crescimento, tendo exclusividade em eventos do porte das Olimpíadas de 2012. O futebol continua elevando os índices de audiência e recebendo pesados investimentos, sendo alvo de disputas por direitos de transmissão nem sempre transparentes. No jornalismo, o desgaste das fórmulas consagradas é perceptível. Como produto, a exibição de filmes já não atrai a audiência nem recebe destaque na programação. Depois da pirataria em DVD e da internet, quem precisa esperar pela Tela Quente para ver um filme lançado no ano anterior?
Embora procurando compreender os perfis dos públicos na era digital e da segmentação, a TV continua sendo um veículo de comunicação poderoso, capaz de agendar temas sociais, conquistar telespectadores e abalar governos. “O termômetro que mede a democracia numa sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação”, afirmava Herbert de Souza. A observação de Betinho é uma verdade constantemente esquecida. Uma mídia que não permite a participação dos cidadãos, que não abre um canal realmente interativo, é uma mídia que não se abre à realidade e aos valores de uma nação, mas os impõe de forma subjetiva.
A televisão, que deveria ser a mediadora, tornou-se um meio transfigurado na própria mensagem. Contudo, Dominique Wolton (2005) nos oferece um contraponto. Segundo o pensador, frente à televisão, por exemplo, não somos passivos, pois nosso cérebro está funcionando. Existe uma interação. Aos que criticam a televisão, Wolton responde que, para que haja sufrágio universal, é necessária a mídia de massa. A televisão não reduz a desigualdade, mas impede mais desigualdade. Sem comunicação de massa, não há democracia de massa. Para o autor, a vantagem da televisão aberta é seu poder de pautar o público, fazendo-o pensar em coisas que, de outro modo, não pensaria.
A síndrome de Chaves
Na comunicação, o grande desafio é o grande público. Já a TV segmentada é mais comunitária que societal, ou seja, atende à demanda de comunidades específicas, não impõe a alteridade. Tentam nos fazer acreditar que aquilo que é voltado para a massa é ruim; bom é o segmentado, pequeno e controlado. A mídia de massa é boa, pois é coabitação, enquanto a minoria é comunitária. A sociedade é massa, não comunidade. Wolton defende que, quanto à crítica da mídia de massa, devemos observar que, se a visão de quem só vê o que há de ruim na mídia estivesse correta, não haveria possibilidade de emancipação. A mídia de massa é a condição para a democracia de massa e não é a mídia que controla a realidade, mas o receptor, a partir do que faz com a mensagem que recebe. A audiência não mede a demanda,mas a reação diante do que é ofertado. O ser humano sempre é inteligente.
Wolton defende que os intelectuais marxistas creem que o povo é alienado, o emissor, um manipulador. Se assim fosse, o sufrágio universal seria estupidez, pois o povo seria estúpido. O ser humano pode ser dominado, mas não alienado. Há pessoas muito cultas e estúpidas, outras, analfabetas e inteligentes. O receptor não é burro. A democracia de massa é melhor que a democracia da elite. Wolton demonstra uma crença na inteligência e capacidade do ser humano também enquanto telespectador.
A crença é salutar, porém a realidade brasileira nos faz desconfiar de todo esse potencial democrático da televisão, visto que ela não é tratada como um bem público, mas privado desde o seu surgimento no Brasil. Ao olharmos para os últimos 30 anos, veremos uma grande evolução tecnológica e significativas mudanças na programação. Contudo, em termos de contexto político e gestão desse meio de comunicação, pouca coisa mudou. Talvez, seja a síndrome de Chaves, de um modelo que mesmo aparentemente superado, já conhecido, decorado e saturado ainda nos faz rir diante de algo que já conhecemos, mas ficamos a esperar por um inédito episódio que nunca chega.
Referências:
BOSCOV, Isabela. A era das celebridades. Veja. p. 106-113, 12 jan. 2000
WOLTON, Dominique. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996.
***
[Alexander Goulart é jornalista e doutor em Comunicação Social]