Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O homem que se liga em você

Pereirão, a protagonista interpretada por Lilia Cabral em “Fina Estampa”, pode falar grosso na novela das oito, mas na vida real a voz predominante na Rede Globo – onde a “faz-tudo” fictícia é atualmente uma das principais atrações – é muito diferente. Isso fica claro logo nos primeiros minutos de conversa com Octávio Florisbal, o executivo número um da principal rede de televisão do Brasil e uma das maiores do mundo. Na ampla sala de almoço privativa localizada no topo da sede da Globo em São Paulo, a alguns metros da avenida que homenageia o jornalista Roberto Marinho, fundador do grupo, Florisbal conversa o tempo todo – duas horas e 43 minutos, para ser exato – sem fugir a um tom brando, sem tensões, com o qual conta histórias e faz observações sobre a mídia. Com 30 minutos de conversa, você esquece que está diante do homem a quem é atribuído um poder ímpar na TV brasileira. Ao fim da primeira hora, ele parece um amigo de muito tempo.

“Aqui, as massas, os risotos, as carnes, os peixes são todos ótimos”, diz Florisbal, enquanto passa os olhos no cardápio. A seu lado está Massimo Ferrari, responsável pela cozinha da direção da Globo desde que deixou a sociedade com o irmão no restaurante da família, o Massimo, um dos mais tradicionais de São Paulo. Ele avisa, sorridente: mesmo quem escolher carne ou peixe poderá provar suas famosas massas, que serão servidas na entrada, como degustação.

Depois de optar pelo prato do dia – escalopinho com purê e legumes –, Florisbal explica como convive com as exigências de sua posição. “Sempre ouvi dizer que o diretor-geral da Globo é poderoso, que manda… Mas, quando você passa a exercer o cargo, aprende que não deve exercer esse poder. Você precisa se integrar às equipes, trabalhar com elas, festejar junto quando atinge um objetivo e ficar triste quando não chega lá.”

Visão conservadora

Em uma empresa do tamanho da Globo, isso requer uma rotina de trabalho exaustiva: são 122 emissoras, 5 delas controladas pela família Marinho. Ao todo, são cerca de 30 mil funcionários, incluindo 10 mil profissionais diretos, 10 mil terceirizados em áreas de apoio, e outros 10 mil que atuam nas 117 emissoras afiliadas, também acompanhadas pelo comando central. Só o grupo mais próximo, que inclui o diretor-geral e os de centrais, envolve 30 pessoas. No degrau seguinte, há 300 diretores de divisão. “Tomo o café por volta das 8 ou 9 da manhã e passo o dia fazendo reuniões. São entre oito e dez reuniões por dia. E às vezes ainda sobra um jantar”, brinca Florisbal.

– Em uma rede de TV, não é difícil administrar egos?

– Essa é uma questão sensível. Lembra do Bozó [personagem do comediante Chico Anísio, cujo bordão era “Eu trabalho na Globo”]? Ele foi inspirado em uma pessoa real, um cameraman que depois virou diretor de corte e diretor de TV e ainda está na ativa. Ele tomava o trem na Central do Brasil, rumo à Baixada Fluminense, onde morava, sem tirar o crachá do pescoço.

– E como lidar com isso?

– Os profissionais são muito diferentes. Com diretores de núcleo, atores, autores de novela é preciso ouvir muito, aparar arestas…. Eles são criadores, artistas, são mais sensíveis. No jornalismo, as pessoas são mais objetivas. Na área comercial, você trata com homens de negócio. Para cada área tem que ter uma linguagem diferente.

Aos 71 anos, Florisbal é o sucessor de figuras fortes como Walter Clark e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Ambos comandaram a Globo sob um modelo no qual as decisões eram bastante concentradas na figura do diretor-geral. A estratégia começou a mudar com Marluce Dias da Silva, a quem Florisbal sucedeu, dez anos atrás. Formado em comunicação pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, de São Paulo, o executivo entrou na Globo em 1982, para montar o departamento de marketing, depois de passar por várias agências de publicidade. Em 2002, já na direção do departamento comercial, ele se preparava para deixar o país – o plano era passar uma temporada na Toscana, com a mulher – quando foi surpreendido pelo convite da família Marinho para substituir Marluce, que se afastava para um tratamento médico.

Tempos depois, Marluce decidiu não voltar. Permaneceu como assessora de Roberto Irineu Marinho, e Florisbal assumiu o cargo definitivamente em 2004. O trabalho de descentralização iniciado por Marluce foi aprofundado, embora o executivo diga que ainda há espaço para mudanças. “Televisão você não faz sozinho”, afirma. A Globo tem hoje vários comitês – operacional, de pesquisa, de tecnologia, de gestão etc. -, que se integram em reuniões semanais para definir estratégias de médio e curto prazos. A palavra final, porém, pertence a Florisbal. “Quando não se chega a um consenso, cabe ao diretor-geral tomar a decisão. E o diretor-geral sou eu”, diz ele.

Muitas vezes é preciso dizer não.

– Nas novelas mais recentes da Globo há sempre casais homossexuais, mas o beijo gay nunca saiu. Por que não?

É, em grande parte, uma percepção de classe social, responde Florisbal. As classes A e B dos grandes centros urbanos, diz ele, tendem a ser mais vanguardistas. Mas 70% dos espectadores vivem no interior dos Estados ou em pequenas capitais e têm uma visão mais conservadora dos hábitos sociais. É a visão da maioria.

Expectativa de aumento

Florisbal conta o caso de uma pesquisa feita com o público feminino. Elas demonstraram entusiasmo em ver incluídos nos enredos das novelas temas como o orgasmo feminino e a impotência masculina. Mas, quando questionadas se se sentiam à vontade para ver cenas abordando esses assuntos na frente dos maridos ou filhos, a maioria recuou. E, como o hábito de ver novela é coletivo, a regra básica é evitar constrangimentos. “Nessa questão, mais refletimos o comportamento da sociedade do que nos propomos a ser vanguarda”, afirma o diretor-geral da Globo.

As diferenças entre as classes sociais vêm trazendo novos desafios à Rede Globo, à medida que a classe C entra no mercado de consumo. Esse ingresso em massa está estabelecendo um comportamento diferente do que costumava caracterizar a curva de ascensão social no país, diz Florisbal. “Hoje, o cidadão carioca que nasceu no Méier [bairro da zona norte do Rio] e ascendeu socialmente quer continuar a se vestir com roupas coloridas, frequentar o bar de petisqueira e ir ao baile funk. Ele sabe que vai se sentir um peixe fora d’água se mudar para um bairro mais rico.”

A estratégia para agradar a essa nova classe C – enriquecida, mas fiel às raízes – sem perder a atenção das classes A e B, que sempre deram o tom do chamado “padrão Globo de qualidade”, é criar equilíbrio na grade de programação. Em noticiários como “Jornal da Globo” e “Bom Dia Brasil” é possível expandir a cobertura de temas políticos e econômicos, que despertam o interesse da classe média, público majoritário desses telejornais. Outros noticiários são mais gerais: têm economia e política, mas de maneira concisa, o que abre espaço para reportagens de comportamento e variedades. O importante, diz Florisbal, é procurar a identificação com uma faixa de público sem afastar as demais. É o caso de “A Grande Família”, que reproduz os hábitos de uma parte da classe média – com as cortinas de plástico e o mobiliário característico do cenário, incluindo o impagável bule em formato de abacaxi -, e está no ar, com audiência de várias faixas de renda, desde 2001.

– E a internet? É um risco?

– Acho que não. Somos otimistas com a tecnologia.

A Globo começou como uma empresa concentrada exclusivamente em TV aberta, mas soube adaptar-se aos tempos, expandindo-se para a TV paga, diz o executivo. Há cerca de quatro anos, todo o conteúdo dos sites da rede – como o G1, de notícias, e o esportivo Globoesporte.com – passou a ser produzido internamente. O apoio da Globo.com, hoje, se restringe à área técnica, como a elaboração de aplicativos, os pequenos programas acessados via internet.

O público jovem acessa várias telas ao mesmo tempo – computador, tablet, celular etc. -, mais isso não significa que ele vá abandonar de vez a televisão, afirma Florisbal. Nos Estados Unidos, 55% dos acessos à internet já são via dispositivos móveis e 60% do conteúdo acessado é vídeo, comenta. No Brasil, o cenário é diferente, com a banda larga chegando a apenas 10% ou 15% dos domicílios. O cenário, no entanto, pode mudar rapidamente com um combinação de fatores, em particular os programas governamentais para disseminar as conexões de acesso rápido à internet e a substituição dos celulares básicos por smartphones, estimulada pela queda nos preços desses modelos mais avançados, que permitem navegar na internet. Criar conteúdo para celular requer cuidados, porque a tela é pequena, mas a oportunidade é imensa.

“As classes C, D e E, que representam 80% da população, gastam de três a quatro horas por dia no transporte coletivo. Elas vão consumir muito conteúdo [no celular] se tiver [programação] disponível”, afirma o executivo. “Estamos desenvolvendo vários projetos no Rio e em São Paulo para ônibus, metrô e taxis.” Nem o céu é o limite – a Globo discute com companhias aéreas a possibilidade de transmitir conteúdo de TV em tempo real durante os voos.

Chega, então, a hora de um intervalo para escolher a sobremesa. “Todos são elegantes, mas tem um doce especial. É o ‘tarte tatin’, uma torta de maçã quente acompanhada de sorvete de creme que é uma das especialidades da casa”, sugere Florisbal. “E o mil-folhas também é muito bom…”

Depois do alvoroço provocado pelo cardápio das sobremesas, é hora de voltar à conversa. “Parece incrível, mas a televisão nunca esteve tão bem quanto agora”, afirma. Nos anos 70, diz ele, o meio representava 52% do bolo publicitário no país. Hoje, a fatia é de 64%, a “maior do mundo”. Como a economia em geral, o mercado publicitário passou por maus bocados em 2008 e 2009, com uma recuperação em 2010, quando cresceu entre 15% e 16%, cita Florisbal de cabeça. Ele é bom com números – seus comentários são pontuados por projeções e dados. “Neste ano não temos eleições e a economia está um pouco mais contida. Estamos apostando que o mercado publicitário vá crescer 7%. Quanto ao PIB nominal, a expectativa é de um aumento de 3%, com inflação por volta de 6%. Para o ano que vem, não temos certeza nenhuma ainda.”

Exercício do poder

Como diretor-geral, é papel de Florisbal garantir que a Globo mantenha a liderança de audiência, o que exige testar permanentemente novidades, dar nova roupa a atrações antigas – a telenovela, vale lembrar, completa 60 anos – e ajustar o que está no ar. Tudo com a ajuda das pesquisas de opinião. Os “reality shows”, por exemplo, ainda têm fôlego, afirma o executivo, embora sejam necessárias eventuais correções de rumo. A Globo percebeu que o espectador via exageros nas provas do “Hipertensão”, em que os participantes eram obrigados a comer insetos e outros pratos, digamos, pouco apetitosos. “Fizemos adaptações, tiramos o que era forte demais e aumentamos o tempo dedicado ao relacionamento entre os participantes, na linha moças bonitas, rapazes sarados”, conta.

E há, claro, as novelas. Há muito tempo que se prevê a decadência dos folhetins, mas eles permanecem uma prioridade na Globo, onde cumprem um papel importante na programação, a de fazer o espectador criar um hábito – e não mudar de canal.

– Quanto custa um capítulo de novela?

– Ah, isso, eu não posso falar…

Depois de alguma insistência…

– Isso varia. Depende do elenco, se há locações no exterior… O custo médio é de R$ 500 mil por capítulo.

Como os bons autores de telenovela, Florisbal revela o essencial, mas sem entregar nenhum segredo. É assim que ele aborda sua sucessão na Globo: “Há vários candidatos – quatro ou cinco com excelente potencial. A família Marinho tomará a decisão no momento oportuno”.

Como em qualquer grande empresa, há competição pelos cargos de direção – e o principal deles, claro, é também o mais cobiçado. Por isso, ele afirma que, quando ocorrer, a troca provavelmente será imediata, sem tempo para que o eventual escolhido passe por um processo de desgaste.

Por ora, Florisbal conta que já foi convidado pelos Marinho para integrar o conselho da empresa – também sem data para acontecer. No fim do ano, ele pretende começar a pôr em prática um projeto pessoal que prepara há tempos e só não começou antes por causa de seu ritmo de trabalho.

Paulistano, adepto do kardecismo, viúvo e sem filhos, ele fala com muito carinho – e mais de uma vez – sobre a mulher, Helena, com quem ficou casado três décadas. “Ela foi embora antes da hora e me deixou aqui. Que falta de responsabilidade!”, brinca, fingindo indignação. Sem Helena, o plano de passar um tempo na Toscana foi deixado de lado, mas não o de criar uma organização de ajuda a grupos e associações voltados a crianças – de rua, com problemas de acessibilidade, com doenças como câncer.

Com os recursos que ele e a mulher amealharam, além de doações que espera conquistar, Florisbal pretende complementar os orçamentos destinados a atividades básicas, como alimentação, saúde e vestuário, que muitas organizações sérias não conseguem suprir dignamente, por falta de recursos.

“Não vamos dar dinheiro”, explica. O plano é contratar profissionais como médicos e dentistas e oferecer ajuda a grupos de apoio já existentes, com ações que incluem desde levar as crianças a parques e museus até melhorar a gestão das próprias associações. Em dois ou três anos, é nesse tipo de ação que Florisbal pretende passar a maior parte de seu tempo, o que revela um desprendimento raro, considerando o cargo que ocupa. Isso, sim, é que é exercitar o poder.

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[Heloisa Magalhães e João Luiz Rosa são jornalistas do Valor Econômico]