Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Mais de 800 homicídios por ano em Brasília

Ela é uma espécie de “garota bonita que mora ao lado” de vários “vizinhos”. Eles comparam, nela e com ela, os males mais diversos “das outras”. Ela é mais jovem que a grande maioria dos seus pares, é algo diferente e detém três poderes. De tão diferente, passou a ser “Patrimônio Cultural da Humanidade”. Ela é Brasília, uma das 30 regiões administrativas (cidades) do Distrito Federal (DF).

Entreoutras matérias sobre mais uma comparação com “as outras”, vale citar a do Jornal de Brasília, “Homicídios – Um ranking desanimador” (edição de quinta-feira, 15/12/2011 – p.14). Na matéria, Carlos Carone, um talentoso jornalista do ramo (segurança pública), apenas compara o DF com o restante do país, segundo os números de um recente estudo do “Instituto Sangari”: “Mapa da Violência 2012”. Dessa vez, o “mal” que é objeto de comparação, no âmbito do estudo, é a incidência daquele que parece ser o mais chocante dos crimes – o homicídio (em índices por 100 mil habitantes). Trata-se de um “mapeamento” dos homicídios ocorridos no Brasil nos últimos trinta anos. Segundo o documento, atualmente a pior situação (números de 2010) é a de Alagoas (índice de 66,8 ou 2.085 mortos aproximadamente em uma população de 3.120.922) e a melhor é a de Santa Catarina (índice de 12,6 ou por volta de 806 mortos em uma população de 6.249.682 habitantes).

Ainda que os índices de homicídios sejam mesmo proporções (cada unidade do índice correspondendo a um homicídio para cada 100 mil habitantes da população), nem por isso eles deixam de produzir números extremamente curiosos quando comparados nacionalmente em sua expressão bruta (função da população de cada estado e do DF). Enquanto o índice de homicídios de apenas “um” em São Paulo corresponderia a 412 homicídios (população 41.252.160), em Roraima o mesmo índice equivaleria a aproximadamente quatro homicídios (população de 451.227).

Dados resultam de diferentes trabalhos

Nesse mesmo estudo, o Distrito Federal (DF) está no segundo terço (tercil) da hierarquia nacional de homicídios, tendo por base as populações estaduais contadas pelo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. Curiosamente, o DF (índice de 34,2, ou por volta de 876 mortes em uma população de 2.562.963) é “muito mais homicida” que o Rio de Janeiro (índice de 26,2, ou quase 4.190 mortos em uma população de 15.993.583) e São Paulo (índice de SP=13,9 ou por volta de 5.734 mortos em uma população de 41.252.160) conforme consta do estudo.

Igualmente curioso que o Rio de Janeiro (índice de 26,2 – cerca de 4.190 mortos numa população de 15.993.583) apresente índice menor que os de Roraima (27,3 ou cerca de 123 mortos em população de 451.227) e do Ceará (29,7 ou por volta de 2.509 mortos em população de 8.448.055). E é não menos estranho detectar um número índice para São Paulo (13,9 produzindo aproximadamente 5.734 mortos em uma população de 41.252.160 habitantes) ficando bem próximo (apenas imediatamente após, “para mais”) do Piauí (índice de 13,7 ou aproximadamente 427 mortos em população de 3.119.015) e de Santa Catarina (índice de 12,9 ou por volta de 806 mortos em população de 6.249.682).

É não menos curioso que surjam agora todos os números de 30 anos de homicídios da totalidade das 27 unidades federativas. E isso ocorre no mesmo ano em que o Ministério da Justiça aponta falta de dados locais para informar políticas públicas nacionais de segurança.

Mas obviamente que existem os números. Eles resultam de diferentes trabalhos que, de alguma forma, promovem intersecção entre dados constantes de bases de dados de “mortes violentas” do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde (não de homicídios propriamente ditos) e dados constantes de bases de registros policiais (dessa vez, efetivamente homicídios, ainda que nem eles sejam válidos “a toda prova”…) dos 26 estados e do DF.

Não existe “relatório padronizado”

Igual tipo de metodologia de análise criminal estratégica, quase ao mesmo tempo (cerca de uma semana atrás), fez com que a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro promovesse uma audiência pública para questionar a congruência de um outro estudo com a realidade dos homicídios incidentes naquele estado. Trata-se de outra pesquisa do gênero (“Mortes Violentas Não Esclarecidas e Impunidade no Rio de Janeiro”), adotando metodologia similar à do “Instituto Sangari” quanto à origem dos dados (SIM e registros da segurança pública).

É intuitiva a noção de que é da área de saúde que derivam os diagnósticos de “morte”, enquanto é competência dos órgãos do sistema de segurança pública ou justiça criminal (Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário) tratar de quais e quantas “mortes violentas de causa indeterminada” ficarão depois oficialmente determinadas como homicídios.

Menos perceptível, mas não menos verdadeira, é a noção de que é preciso “comparabilidade” (e talvez aí resida o problema ou limitação das duas pesquisas citadas) para comparar de maneira válida e confiável objetos que apenas parecem ser da mesma natureza. Talvez seja esse o caso com relação às bases de dados de registros policiais. Não existe um “relatório padronizado de homicídios” no Brasil. Cada uma das 27 unidades federativas possui seu próprio padrão de relatórios sobre crimes em geral, homicídios inclusive.

Lições de Disraeli

Afora a questão da falta ou fragilidade de comparabilidade entre as bases de dados policiais dos estados, os relatórios correspondentes são feitos conforme uma processualística típica da esfera policial – algo classificado hoje como homicídio poderá deixar de ser amanhã, igualmente que aquilo que não foi hoje classificado originalmente como homicídio poderá passar a ser assim titulado posteriormente. Como se mais não bastasse, os princípios do contraditório e do devido processo legal não permitem que um “fato típico” possa receber “classificação imediata” como soe acontecer com variáveis de objetos de fenômenos físicos (temperatura, pressão, tamanho etc.).

Outra questão bastante peculiar do sistema de justiça criminal é a tecnologia utilizada para o estabelecimento de registros. Isso implica no fato conhecido no meio da gestão da segurança pública, de que ter os melhores registros pode fazer parecer “estar pior quantitativamente” em termos de número de registros, comparativamente com aqueles que utilizam tecnologias de qualidade inferior (“registrando menos”). Ou seja, quem tem registros confiáveis e inclusivos de homicídios, pode parecer ter piores índices do que aquele cujo sistema, arcaico, mostra um número de registros de dados menos inclusivo e, portanto, “para menos”. É conhecida a capacidade operacional da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), robusta tecnologicamente, em capturar dados inclusivos e de qualidade no que tange ocorrências criminais, aí incluídos, obviamente, homicídios.

Mas “relatar a contagem de homicídios” e de outros crimes, no Brasil, parece que passou a ser mais do que um “ofício contábil” realizado sobre registros homogêneos e definitivos, portanto, válidos e confiáveis. Passou a ser um “evento” que atrai a atenção, perplexidade e até mesmo a indignação da opinião pública. Produz comoção, algo que é referido na literatura técnica como “pânico moral”. Ainda assim, recomenda a prudência que qualquer número do gênero seja examinado “com toda cautela e mais um pouco”. Afinal, é sempre atual a máxima de Benjamin Disraeli (1804-1881) de que “existem três tipos de mentiras: mentiras, grandes mentiras e estatísticas”. No dizer daquele político britânico, a citação refere de maneira bem humorada o poder de persuasão dos números, particularmente estatísticas, até mesmo para promover argumentos de validade duvidosa…

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[George Felipe de Lima Dantas é professor, Brasília, DF]