Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quem matou a telenovela brasileira?

“Não é brinquedo, não!”, diz em bom português a marroquina Zeinep Kaleli, 27, ao saber que a entrevista que estava concedendo sairia num jornal brasileiro. Ela nunca fez aula da língua – a não ser aquelas com metodologia de ensino Dona Jura, personagem que tocava um boteco na novela O Clone, que foi ao ar na Globo no começo da década de 2000 e depois tomou o mundo, passando pelo Marrocos em 2005 e por uma trintena de países. Mas o português de Zeinep enferrujou desde que, há quatro anos, trocou as novelas brasileiras por outras, produzidas num país mais próximo: a Turquia.

Não foi só ela. Dos 22 países do Oriente Médio e do norte da África, 21 exibem nesta noite um folhetim turco, enquanto só quatro televisionam produções brasileiras. Há dez anos, eram 12 nações mostrando O Rei do Gado, Escrava Isaura e folhetins exportados de nossa grade televisiva. Os números são de levantamentos feitos a pedido da Folha pelos institutos Mediamétrie e Memri. Essa conquista de território televisivo começou há cinco anos, com Ask-i Memnu (Amor proibido). A novela explodiu por acaso. “Produzimos esse drama só para o mercado nacional, até porque turco e árabe são duas línguas completamente diferentes e não sabíamos se países mais religiosos aceitariam o roteiro”, diz o produtor Kerim Turna.

Mas um executivo de TV libanês em visita à Turquia se apaixonou pelos atores (“muçulmanos, mas moderninhos”, explica Turna) e decidiu bancar o risco. Comprou cada capítulo da novela por US$ 100 e os lançou no seu país, depois de fazer dublagem na Síria – onde ganham a voz árabe.

Ao cabo de um ano, 21 países da região estavam envolvidos no enredo estrambólico em que o filho adotivo se apaixona pela esposa do pai, que no final se mata porque o divórcio não é uma opção.

Novelas brasileiras perdem espaço fora

 “A fórmula é simples: há amor e há vingança”, afirma Özlem Özsümbül, do KanalD, que produz novelas turcas e com elas cresceu 40% em cinco anos, tomando o espaço das novelas brasileiras. “Não há clones, nem espíritos”, diz, tirando um sarro do realismo fantástico do produto nacional brasileiro. “Nem sexo.” Quer dizer, sexo até há nas novelas orientais. Mas é sempre coberto por lençol, precedido de casamento e seguido de gravidez. “Está aí a diferença”, diz a pesquisadora Isabel Cunha Ferin, da Universidade de Coimbra. “As telenovelas brasileiras são consideradas muito libertárias, em especial por ter mulheres sexualizadas. Talvez por isso diminua seu impacto nos países da região [Oriente Médio].” Já as produções locais, diz a professora, têm “uma ficção com conteúdos e sensibilidades mais próximos, principalmente no que toca à condição da mulher árabe”.

Tocar o público feminino foi de fato a peça-chave nessa expansão. O último capítulo de Noor, sucesso de 2010, bateu o recorde de audiência no mundo árabe: 85 milhões de telespectadores – metade, mulheres adultas. “É ouro! Hoje, eu compraria qualquer coisa que a Turquia produzisse. Não posso dizer mais o mesmo para o Brasil e para o México”, diz o diretor de um canal egípcio, sob pedido de sigilo, em uma feira de publicidade em Istambul. Na feira, foi anunciada a vinda dos noveleiros muçulmanos para a América: Amor Proibido ganhará em 2013 uma adaptação latina, da mexicana Televisa.

Principal rede brasileira a exportar novelas, a Globo diz em nota que não houve diminuição nas vendas à região. “De 2000 a 2008, os negócios da emissora eram vendidos para as línguas árabe e hebraico. A partir de 2009, abrimos o mercado para o idioma farsi [falado no Irã, Afeganistão e Tadjiquistão].”

Enquanto a novela da batalha pelo mercado muçulmano é travada, Zeinep, que aprendeu português com a TV, começa a estudar turco. “Eu preciso falar a língua deles”, diz. Dessa vez em árabe mesmo.

Globo vai gravar na Turquia

Depois do Marrocos (O Clone) e da Índia (Caminho das Índias), a próxima novela da autora Glória Perez terá a Turquia como cenário. Produtores da trama estão preparando sua ida para Istambul, em fevereiro. A novela, que será protagonizada por Nanda Costa, tem estreia prevista para 2013, na Globo.

Novelas em árabe serão filmadas em 2013

Aguinaldo Silva que peite a realeza. No ano que vem, começa a ser gravado um roteiro escrito por um xeique saudita. “Vai ser a primeira novela que gravaremos diretamente em árabe, com atores árabes”, diz Özlem Özsümbül, do KanalD, que não divulga o nome do soberano.

Será também a primeira novela oriental gravada numa cidade cenográfica. “Filmávamos em mansões à beira do [estreito de] Bósforo, nos bairros mais ricos de Istambul”, conta o produtor Kerim Turna. Mas, desde o advento das novelas turcas, o número de turistas árabes cresceu consideravelmente: aproximadamente 40%, segundo o governo da Turquia. E muitos deles queriam conhecer os sets e tietar atores. “Como as casas eram sempre as mesmas, não tinha como evitar que eles atrapalhassem um pouco o trabalho”, diz Turna.

O set, a duas horas de Istambul, é composto por seis prédios cenográficos, que custaram à produção cerca de R$ 6 milhões. “Mas ainda está longe de ser um set brasileiro”, diz Özsümbül. O produtor afirma, no entanto, que o mercado de novelas está em evidente expansão em seu país. “Há cinco anos, ninguém da América Latina nem sequer respondia a nossos e-mails. Hoje, todos querem saber qual é o nosso segredo”, diz. “Quem sabe um dia melhoramos a ponto de virar o Brasil do Oriente?”

Regras da novela na Turquia

Cabelos – As protagonistas nunca os cobrem, só os figurantes

Palavrões – São censurados com um “pííí”

Sexo – Se o mocinho e a mocinha dormem juntos, ela vai ficar grávida na manhã seguinte

Censura – Em alguns países, cenas de mulheres com ombros (ou mais) à mostra são cortadas

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[Chico Felitti escreveu para a Folha de S.Paulo de Istambul (Turquia)]