“Há algo de podre no Reino da Dinamarca.” A célebre frase do bardo inglês parece ter pego uma carona na máquina do tempo, atravessado o continente e ancorado no Brasil. Saiu das páginas da literatura universal e desembarcou, mais precisamente, na sede da CBF, no Rio de Janeiro. É que o árbitro Gutemberg de Paula Fonseca (RJ) abriu fogo em acusações bélicas contra o presidente da Comissão Nacional de Arbitragem (Conaf), Sérgio Correa, afirmando existir uma “máfia do apito”. Segundo o denunciante, os jogos do Corinthians – que acabou ganhando o título, além do estádio milionário para a abertura da Copa do Mundo – tinham tratamento especial. Os árbitros eram obrigados, antes de cada partida, a “ligar” para o dirigente. Uma suposta pressão (parcialmente) velada para favorecer escolhidos.
O que mais nos surpreende nesse caso? Certamente, ao leitor atento, não há de ser o teor da denúncia. Ela não surpreende ninguém. Não precisávamos de Gutembergs expatriados (ele acaba de ser expulso dos quadros da Fifa) que, por indignação de momento ou perda de beneficio próprio, viessem a público jogar trastes ao ventilador ou cuspir no prato em que comeram. A grande surpresa dessa história é o triste papel da imprensa.
No discurso, nos fóruns, nos âmbitos de premiação, a imprensa desportiva posa de “ética”, “autêntica” e “devotada”. Cresce a cada dia a tendência messiânica dos jornalistas a serem patéticos “heróis nacionais”, cobrindo tudo e estando em todos os lugares, se enfunando em zonas de tiroteio com coletes de plástico azul-bebê. É de se lamentar que, em episódios como esse, a imprensa mais “encubra” do que efetivamente “cubra” os fatos.
Omissão da informação
Temos uma enorme quantidade de profissionais da imprensa infiltrados nos clubes. Eles investigam tudo, fazem materiazinhas sensacionais, laureadas aqui e acolá. E exibem, sorridentes e orgulhosos, seus dentes amarelos nas fotos em que recebem troféus por isso. Pergunto eu: nenhum deles sabia, ouviu falar ou sequer almejou descortinar esse universo sujo, sórdido e fedorento da corrupção nos bastidores da arbitragem? São cegos, incompetentes a tal ponto? Ou simplesmente omitem os fatos que, pela ética da profissão, deveriam tornar públicos à sociedade? Onde estão os outros Jenkins, que só temos um no mundo inteiro? É isso que todos devemos cobrar, como cidadãos conscientes: a transparência da imprensa. Senão a sua mancomunação, por algum benefício próprio, com o que de errado é por ela acobertado.
A vergonha está aí, e bem na cara de todo mundo. Mas os “hiperultramegamaxicompetentes” repórteres de nossa imprensa “não viram”, “não ouviram”, “não falaram”. Os “Sherlock Holmes” dos gramados estavam jogando xadrez com Watson enquanto roubos elementares lhes passavam desapercebidos. A verdade é que o futebol virou grande negócio, comprado por grandes empresas, negociado por altos royalties. Quem compra o produto precisa revendê-lo e encobre suas mazelas para não “ameaçar o prestígio da marca”. É puro marketing de ocultação de cadáver!
Sórdidos e cínicos, sentam-se diante de um Gutemberg esbaforido fazendo pose e expressões de espanto frente às denúncias, como se nunca tivessem sabido de nada. Quando deveriam, na verdade, não exatamente ouvir, mas interrogar este e outros senhores a respeito do assunto. A corrupção do futebol não é culpa da imprensa; a omissão da informação, sim!
Ninguém vai querer discutir
Foi mais ou menos isso que vimos, como bem salientou o Observatório da Imprensa no caso do tiro ocorrido no carro do Adriano: mais parecia novela investigativa das oito (“culpado ou inocente?”) do que jornalismo sério, apurando que segurança era esse, como abandona uma arma mortal num banco de carro e por que o jogador precisa de companhias assim (ver “A bala perdida da mídia”). E no fim da novela… bingo! O “mocinho” é inocente! Todos ficam felizes… happy end é isso aí! Ridículo!
Já que o futebol é uma das mais recorrentes fontes de manobra das massas, a discussão sobre corrupção, estelionato, falsificação de resultados, danos ao consumidor (que adquire um ingresso e é lesado na autenticidade do produto adquirido) e outros crimes imorais serão tratados simplesmente como “rivalidade”, “rixa de torcida”. Folclorizam a situação como “paixão clubística” e tudo permanece impune.
A massa acéfala dirá que é “choro de vice”, que é “chororô” e, enfim, mais uma vez desviará o assunto de âmbito policial e jurídico para a mesa de bar, neutralizando a possibilidade de se punir criminosos e desmoralizar os maus profissionais que acobertam esse tipo de coisa. Assim vamos pavimentando, com falsidade ideológica e hipocrisia, as ruas do nosso país. Assim vamos assentando uma pátria sem lei e com impunidade.
Lamentavelmente esse assunto fugirá das pautas das resenhas de televisão. Ninguém vai querer discutir isso a fundo. Como nunca se discutiu nem se investigou a fundo a vergonha da Copa da França. Dizia o samba da São Clemente em 2004: “Macunaíma, anti-herói idolatrado / Aqui tudo foi tramado pra virar esculhambação”.
Eis aí o novo Gutemberg a quem a imprensa tem por pai…
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[Hélio Ricardo Rainho é publicitário, Rio de Janeiro, RJ]