A midiática manobra de gigantes da internet como Google, Facebook, Wikipedia e Twitter contra legislação antipirataria que tramita no Congresso dos Estados Unidos foi objeto de artigo crítico de Álvaro Pereira Júnior na Folha de S. Paulo (“Nova mídia X velha mídia”, 21/1/2012).
Pereira Júnior escreveu:
“Os ‘revolucionários’ Google, Facebook, Yahoo etc. também são conglomerados bilionários, como são/foram os estúdios de Hollywood e gravadoras. Têm as mesmas aspirações monopolistas, são igualmente obcecados pelo lucro (e esta não é uma crítica, é só uma constatação).
“Já são um novo establishment, que pressiona com sucesso a Casa Branca e faz com que políticos, em um passe de mágica, mudem de opinião e posem de defensores da liberdade de expressão.
“(…) A pose adolescente das corporações do mundo on-line vive seus últimos dias. Quem manda agora são elas, e seria honesto assumirem isso”.
O argumento é inteligente, porque, sem entrar no mérito da disputa, expõe a cara de pau dos vencedores (temporários) da competição na galáxia pós-Gutenberg.
Outro ângulo, porém, também pode e deve ser explorado no debate. Usar conteúdo alheio sem pedir licença não é ético, não é honesto, não é legal, nem legítimo. Será que determinado número de usuários – por multimilionário, quase bilionário que seja esse número – adquiriu o direito de revogar a legislação vigente passando por cima das instituições?
A telemática e a digitalização introduziram mudanças irreversíveis em todo o processo da comunicação. Criaram a falsa expectativa de um acesso igualitário ao conhecimento e à cultura. Mas não alteraram os pressupostos da propriedade corporativa. Como escreveu Bernardo Carvalho (“Em defesa da obra“),
“Nenhuma empresa abrirá mão de suas patentes científicas ou industriais em nome da visibilidade, do bem comum ou do direito à informação. A começar pelas próprias corporações de mídia eletrônica – elas estão interessadas, isto sim, na adoção de um modelo flexível de licenciamento e difusão de conteúdo.
“O Google, por exemplo, não pretende tornar disponível a usuários e competidores o saber por trás de seus serviços – e não é por acaso que mantém sigilo desse saber, a ponto de nenhuma informação sobre a empresa aparecer no próprio Google, que em princípio deveria ter acesso a tudo”.
Estão expostos os traços de uma dessas situações em que o engodo tem sido aceito pela mídia, na sua cobertura de falsas rebeliões libertárias, devido à inércia, ou à desatenção. “A sorte ajuda os audazes”, sentenciou Virgílio com muita propriedade.
Crime ou luta contra a opressão?
Se piratear é crime, como ficamos: propomos a mudança da lei, para que deixe de ser crime, ou aceitamos o crime como legítimo recurso da luta contra a opressão? Mas qual opressão? No Brasil a opressão não está exatamente no campo jurídico-institucional, embora também esteja aí, mas principalmente na realidade dos Brasis tão desiguais. Ninguém que tenha juízo está propondo convocar uma Constituinte para mudar o artigo 5º da Carta de 1988.
Sempre existe descompasso entre mudança tecnológica e legislação, mas a cada momento é preciso avaliar o que fere o espírito, a finalidade da lei, da lei em vigor, na sua dimensão social e de proteção de direitos. Por mais que a tecnologia evolua, sempre é possível fazer uma exegese que permita avaliar determinada(s) prática(s) à luz de categorias básicas do direito. E incumbir a Justiça de se manifestar.
Esse desafio se coloca diante de cada geração, e mais ainda numa era em que não apenas as práticas, mas os sistemas de referência para muitas práticas parecem mudar o tempo todo.
O preço de disputar na ponta
Algo que ainda não se percebeu devidamente é que para estar na ponta da utilização das novas tecnologias é preciso dispor de um capital colossal. As empresas jornalísticas mal tinham conseguido digerir o desafio de construir edições digitais em portais convencionais – e digeriram mal, diga-se de passagem – quando se viram diante da incontornável necessidade de produzir edições destinadas a smartphones e tabletes.
Para que as novas mídias disputem em usabilidade e comodidade com o jornal impresso, e mais ainda com a televisão, as empresas produtoras de conteúdo jornalístico independente terão que comprar softwares caríssimos, ou criar seus próprios laboratórios, o que pode ser mais oneroso ainda.
Talvez em algum momento isso compense a desativação das rotativas e das frotas de distribuição, entre outras economias financeiras e ecológicas previstas. O New York Times, que tem seu próprio laboratório de inovações, parece obter resultados positivos com a política de cobrança por conteúdo online.
Mas os desenvolvimentos tecnológicos pesados requerem não só um ponto de partida conquistado anteriormente (a Universidade Stanford foi o berço do Vale do Silício). Requerem mais concentração de pessoas altamente qualificadas e maior uso do tempo delas – leia-se mais dinheiro. Não dá para entender como isso possa reduzir desigualdades.