Na Suécia, fazer downloads de filmes, músicas, programas e shows é a coisa trivial. Mesmo envolvido num feroz debate sobre os direitos autorais, o país nórdico tem forte tradição em liberdade de expressão e compartilhar arquivos na internet é uma coisa corriqueira. Não tem a conotação criminalizada que os defensores dos direitos autorais tentam imputar a ela. O jornalista J. David Goodman publicou no New York Times,na quarta-feira (18/1), uma excelente matéria sobre as origens da cultura sueca de compartilhamento de arquivos.
O fato mais curioso que ele informa em sua reportagem foi o reconhecimento, pela Agência de Serviços Administrativos da Suécia, da religião da “Igreja da Cópia” (Church of the Kopimism), que acredita que copiar é sagrado, assim como o compartilhamento geral de todos os arquivos. “Todos os direitos autorais são heresia e o compartilhamento de música, filmes e outras formas de mídia protegida são um tipo de devoção religiosa”, prega a pequena congregação de 3.000 membros. A Associated Press(5/1) minimizou o fato ao afirmar que o governo sueco costuma apoiar e reconhecer crenças germânicas primitivas, como adoração de elfos, gnomos, trolls e outras entidades da mitologia popular nórdica.
O jornal de Nova York aprofundou a notícia da AP – que foi a fonte original. As culturas germânicas possuem uma dimensão coletivista e cooperativista muito forte. São povos que sempre se apoiaram no coletivismo para sobreviver. O bem-estar coletivo sempre prevaleceu sobre interesses individuais. Esta herança histórica provavelmente está relacionada com o fato do país ter altos níveis de desenvolvimento social e posições progressistas em termos de liberdade de expressão. Costuma acolher com liberalidade os ativistas mais importantes que fazem sua defesa.
Goodman, em seu artigo, explicou a gênese do surgimento do Partido Pirata(The Pirate Party), hoje um dos maiores da Suécia, e que já conquistou dois assentosno Parlamento da União Europeia em 2009. A informação veio do site da organização.
Gravadoras não pagavam os músicos
O partido prega contra as leis de direitos autorais, quer o fim das leis de patentes e maior privacidade online. Seu programa é bem mais extenso. Entende as atuais leis de propriedade intelectual como primitivas e promotoras do atraso no desenvolvimento tecnológico. Tudo começou no início do século 21, com o surgimento do Pirate Bay, o mais notório site de downloads do mundo, criado pelo ex-colaborador do WikiLeaks Per Gottfrid Svartholm, coinventor do sistema bit-torrent, largamente utilizado para baixar filmes, ou qualquer dado digital de grande tamanho. Depois de sucessivos ataques à liberdade de expressão, o Parlamento Europeu, em 14 de dezembro de 2005, aprovou a “Diretiva de Retenção de Dados”, que foi o gatilho para o surgimento do partido, que surgiu dois dias depois, quando o domínio www.piratpartiet.sefoi registrado. Rick Falkvinge, outro importante ativista, juntou-se ao pessoal do Pirate Bay e fundou o primeiro partido pirata da Suécia em 2006.
Anakata (apelido de Per Gottfrid Svartholm Warg) é um especialista em blindagem de sites e privacidade na web, e resiste até hoje no Pirate Bay às investidas dos agentes da lei americanos, que não aceitam a postura desafiadora do programador sueco. Mesmo condenado e foragido, continua com o site no ar. Ninguém derruba o que Svartholm põe na web. E os downloads gratuitos continuam nestes dias de temor da SOPA e da PIPA. O Congresso Americano adiou a votação das duas emendas diante da pressão das “grandes” da web, como Google, Facebook e Twitter e dos mais de 10 mil sitesque participaram do protesto. A Wikipedia em inglês ficou fora do ar toda a quarta-feira (18/01). O perigo foi temporariamente afastado, mas a guerra entre os defensores dos direitos autorais e os ativistas da web livre prossegue.
Existe muita gente horrorizada com este credo revolucionário que defende os downloads gratuitos com paixão, como os donos de estúdios de Hollywood e a indústria musical, que nunca foi conhecida por sua honestidade com os artistas. Ao contrário. Mick Jagger afirmou à BBC(11/4/2010) que nos áureos tempos dos Rolling Stones o dinheiro que chegava às mãos da banda era mínimo e completamente desproporcional aos lucros que esta gerava. As gravadoras simplesmente não pagavam os músicos, explicou sir Mick Jagger.
O provedor mais libertário da web
As origens da Igreja remontam ao surgimento do lobby sueco antipirataria de 2001 (o “Anti-Piratbyran”), que pegou os ativistas do país de surpresa. Estes reagiram e iniciaram o movimento contra os direitos autorais na web. O New York Times explicou:
“Em 2003, membros de um grupo de ativistas da livre informação copiaram o nome do grupo de lobby, mas retiraram o anti, chamando a si mesmos ‘Piratbyran’ – o escritório do pirata. No mesmo ano, o bureau criou um website, o Pirate Bay, que logo tornou-se a referência mundial para downloads de filmes, shows de TV e software. Em 2005, um imigrante curdo chamado Ibrahim Botani criou uma espécie de insígnia anticopyright chamada ‘kopimi’ (ou ‘copy me’ – em português, ‘copie-me’)”.
O curdo era figura central do movimento e seu logotipo inspiraria a criação da Igreja da Cópia. Apesar do tom jocoso da acessão pelo Estado sueco da estranha igreja, a força do ato reside em seu simbolismo inocente. Que é inocente apenas nas aparências. A Igreja é o lado brincalhão, na sociedade sueca, do Partido Pirata, uma organização política séria e comprometida com a liberdade de expressão, com a reforma das leis de direitos autorais – e que pede a extinção da legislação de patentes. Os dois não estão ligados de modo formal. São companheiros em uma mesma luta.
O jornalista não destacou de forma suficiente o papel de Gottfrid Svartholm na criação do PRQ(“PeRiQuito”), o provedor de presença mais libertário da web, e o do Pirate Bay, que foi administrado, até poucos atrás, pelo próprio Svartholm. Até as autoridades suecas exigirem seu afastamento do Pirate Bay, em 2009, por suposta participação em um site estudantil de compartilhamento de textos escolares, o Student Bay, informou o The Local(20/04/2009). Em outubro de 2011, as cortes suecas de justiça ordenaram seu encarceramento, mas Anakata e o Pirate Bay já haviam deixado o país há dois anos.
“Jardim murado”
O ativista está foragido. Seu último tweetveio do Camboja, no ano passado, mas conhecendo o homem, ele poderia estar neste exato momento em qualquer parte do globo. Ele é um dos mais importantes agentes da liberdade de expressão no mundo. Provavelmente o maior especialista em segurança na web no mundo inteiro. Sua presença entre nós é um saudável contraponto aos defensores da comercialização abusiva da internet. Gente como Ruppert Murdoch, que acredita que um link gratuito é a coisa mais imoral da face da terra.
A luta continua. Hoje, as “grandes” da web, como Google, Facebook e Amazon, conseguiram, junto com mais de 10 mil sitesque participaram do protesto, afastar temporariamente os defensores dos dois projetos de lei antipirataria (Sopa e Pipa) norte-americanos que querem transformar a web num grande hipermercado onde nenhum link será mais gratuito e o comércio vai reinar. Mas a votação foi apenas adiada. Eventualmente, as emendas terão que ser submetidas à votação. A ideia de uma internet comercial, controlada e submetida a diretos autorais e leis de patentes ainda permanece viva dentro do Congresso norte-americano, apesar de seu óbvio equívoco.
A web não nasceu para isso. Ela surgiu umbilicalmente ligada à contracultura e a todos os movimentos em favor da liberdade de expressão que existiam e felizmente ainda existem até hoje. Numa hora destas, pregar abertamente downloads livres de músicas e filmes soa doce como a liberdade de compartilhar o que há de melhor entre nós, humanos. A web foi criada na lógica dos hackers, para que todos pudessem participar de seu desenvolvimento. Para que cada um tivesse um lugar nela. A mentalidade generosa de seus fundadores neste momento encontra-se ameaçada pelas mesquinhas forças do mercado, que preferem para a web o formato “jardim murado” à liberdade de compartilhar o que quer que seja pela rede.
Eles estão entre nós
Por isso, por mais louco que pareça, o surgimento de uma igreja que prega que compartilhar arquivos não é crime, mas devoção, é algo que deve ser lido como uma posição política em defesa da internet livre, como originalmente foi concebida por seus criadores, e não como uma bobagem ou particularidade estranha dos nórdicos. A coisa é séria. O momento é de luta. Exige frieza e controle porque o inimigo é poderoso. E um pouco de humor corajoso é sempre necessário na luta. E não vamos nos esquecer que nós, aqui no Brasil tropical, desde as lan houses das favelas até as conexões mais exclusivas em alta velocidade de banda larga das classes médias e altas, todos adoramos downloads gratuitos. Todos precisamos de uma internet livre.
É realmente uma maravilha de nossos tempos podermos assistir a um filme ou show na TV e baixarmos a trilha da web na hora. Quem nunca fez esta experiência de mídia? É como voltar no tempo, rever amigos e épocas que o espaço e o tempo separaram. A web traz não só o futuro, mas ajuda a recompor o passado, a rever os cenários de época, a apreciar de outras formas a passagem da História. Através da rede, não somos mais espectadores aparvalhados diante de imagens em movimento. Somos agentes da História humana. Somos parte de um coletivo mundial com força suficiente para mudar nossos próprios destinos.
Por isso, caro leitor, não se espante com a igreja dos downloads gratuitos, nem com o partido dos piratas. São combatentes da liberdade de expressão. E estão entre nós. A organização mundial é mundial. Estão aqui, no Brasil, neste exato momento: o Partido Pirata do Brasilexiste desde 2007. E é bom que seja assim. Só uma grande rede internacional em defesa da liberdade de expressão poderá prevalecer contra os interesses econômicos hegemônicos da sociedade que estão a retardar o desenvolvimento tecnológico mundial com sua ganância mesquinha. Os suecos criaram a igreja da cópia e do download livre? Pois eu virei mais um crente defensor deste credo.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]