Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A participação da audiência e a crise do jornalismo

Em abril de 2006, a revista The Economist apresentou uma radiografia das novas mídias e do que ela chamou de “era da participação”. De acordo com a reportagem, as tecnologias digitais teriam embaraçado as fronteiras entre audiências e criadores, permitindo a multiplicação da produção de conteúdo em diferentes escalas.

O discurso sobre a emancipação do público reaparece em diversas ocasiões. Por exemplo, em dezembro de 2010, a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) publicou, na capa do seu jornal bimensal, a manchete “É preciso conhecer melhor o leitor”. A reportagem descrevia experiências feitas por jornais no Brasil e em outros países com o objetivo de atrair leitores mais jovens para o consumo de jornais.

Meses depois, em junho de 2011, o ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, em uma palestra realizada na Universidade de Brasília e publicada neste Observatório, classificou a blogosfera como o “grilo falante da imprensa brasileira” em referência à capacidade da sociedade de intervir no conteúdo dos veículos tradicionais em situações em que cobertura é equivocada ou incompleta.

Os exemplos ilustram um debate que percorre os meios acadêmico, profissional e empresarial em torno das mudanças na relação entre jornalistas e públicos. Tal cenário se fundamenta na ideia de uma cultura digital, baseada no agenciamento ativo de informações por usuários detentores de intencionalidade e subjetividade. Esse novo modo de produzir conteúdo, típico da internet, estaria agora sendo apropriado pelas mídias tradicionais, preocupadas com a perda da audiência, sobretudo entre os mais jovens.

Parte dessa mudança é resultado da popularização de dispositivos tecnológicos capazes de produzir conteúdo de forma simples e com baixo custo. A utilização de celulares, câmeras fotográficas digitais e laptops, associada ao acesso a internet criaria um cenário favorável a variadas formas de participação do público. As novas plataformas digitais teriam permitido intensificar a interatividade como parte do processo de produção jornalística por meio do envio e publicação de vídeos, fotos e áudio.

As empresas correm atrás

Com medo de perder audiência, as empresas de comunicação criam iniciativas para aproveitar, mesmo que de forma controlada, a produção de conteúdo fora das redações. A percepção é de que o público (jovem) dedica cada vez mais do seu tempo à produção e o consumo de conteúdo on-line. Por isso, a sobrevivência das empresas tradicionais de comunicação estaria diretamente ligada à capacidade de promover espaços de participação da audiência no jornalismo.

Essa mudança aparece na incorporação de ferramentas de interação em plataformas web (espaços de comentários, fóruns e bate-papos etc.) e na utilização – em diferentes níveis – de redes sociais para se comunicar com o público. Também afeta a produção do conteúdo jornalístico. Por exemplo: até há cerca de dez anos atrás, a utilização de imagens de cinegrafistas amadores era algo raro em emissoras de TV e se justificava apenas em circunstâncias excepcionais. Hoje, em um momento em que vídeo publicados no YouTube são vistos por milhares de pessoas, proliferam-se na televisão aberta quadros feitos exclusivamente a partir da produção amadora.

Em uma pesquisa sobre o DF-TV, telejornal veiculado pela Rede Globo em Brasília, a aluna de Publicidade de Universidade de Brasília Angélica Fonsêca analisou as modalidades de participação do público na produção dos quadros “Você no DF-TV” e “Redação Móvel”. O primeiro surgiu com o intuito de receber denúncias do cidadão em formato de texto, vídeo e imagens e divulgá-las no noticiário. O segundo, como uma forma de aproximar a emissora da sua audiência, mostrando os problemas enfrentados pelos moradores das cidades satélites do Distrito Federal. Segundo Fonsêca, a criação desses quadros impactou diretamente no trabalho dos jornalistas. Eles tiveram de redefinir suas rotinas para lidar com o material produzido pelo telespectador, que “não tem o compromisso ético que os profissionais devem ter com a notícia e, consequentemente, a redação terá que apurar e verificar a veracidade da informação”.

Mais recentemente, dois novos quadros foram criados com o objetivo de promover a participação da audiência na produção do noticiário local: “Parceiros do DF”, com reportagens produzidas por jovens e que mostram o cotidiano de algumas regiões do Distrito Federal; e, “Sem noção”, que veicula vídeos de denúncias enviados por telespectadores.

Tais exemplos denotam o posicionamento da empresa jornalística em suas relações com a audiência. Reforçam a percepção do jornalismo como um espaço que garante visibilidade aos acontecimentos e abre espaço para a apresentação de denúncias. Nesse sentido, a participação do público é apropriada pelo viés do ativismo, reproduzindo, até certo ponto, características da própria narrativa jornalística.

Um jornalismo sem jornalistas?

A questão é que as intervenções veiculadas no noticiário é apenas uma pequena parcela do que realmente é produzido pela audiência na internet. Isso levanta dois pontos importantes para quem deseja compreender melhor esse fenômeno. Primeiro, a maior parte das manifestações do público na Rede não são “jornalísticas”, no sentido de buscarem noticiar fatos relevantes e atuais. Isso explica a necessidade de os veículos de comunicação em desenvolver mecanismos de mediação e checagem das contribuições que vem de fora.

O segundo ponto importante é que as pessoas, em geral, não desejam se tornar jornalistas. Diferente do discurso de vários profissionais e acadêmicos em torno de uma suposta “invasão” do espaço jornalístico pelo profano, o que percebemos é que o conteúdo produzido pela audiência tem a intenção, na maior parte do tempo, de dar visibilidade a eventos do cotidiano e compartilhar opiniões sobre temas de interesse coletivo – e que dificilmente apareceriam na agenda midiática.

Nesse processo, o público pode ocasionalmente se apropriar de aspectos da linguagem jornalística: blogs podem se utilizar do formato noticioso para divulgar uma informação, vídeos e fotos amadores, em geral, reproduzem enquadramentos tradicionais. Isso é resultado do próprio consumo cotidiano da mídia, o que permite que pessoas “comuns” aprendam a mimetizar as principais convenções da produção midiática. O que não significa dizer que exista um desejo da audiência em querer ocupar completamente o espaço jornalístico com conteúdos produzidos fora das redações.

As pessoas nunca deixaram de produzir manifestações artísticas e culturais, expressar opiniões ou partilhar pontos de vista sobre o mundo. Das fotos de família às conversas de bar, a verdade é que a audiência tem sempre se manifestado. Jornalistas e acadêmicos só não davam atenção suficiente a esses fenômenos. Quando eles passaram a ser publicados e compartilhados on-line, tornaram visíveis demais para serem ignorados. Daí o sentimento de ameaça e a necessidade de trazer a audiência de volta. Não acredito que esse novo cenário vá mudar de forma radical a forma como fazemos e consumimos jornalismo. Mas serve, ao menos, para chamar a atenção para a existência do público.

***

[Fábio Henrique Pereira é doutor em Comunicação, professor da FAC/UnB, editor do Observatório Mídia&Política]