No final de 2010, às vésperas da Primavera Árabe, um blogueiro tunisiano perguntou ao ativista egípcio Alaa Abdel Fattah quais nações democráticas deveriam ajudar os internautas rebelados no Oriente Médio. Abdel Fattah, que passou um período na prisão durante o governo de Hosni Mubarak, respondeu que, se as democracias ocidentais queriam apoiar os ativistas da internet, tinham de, primeiro, colocar a casa em ordem. E chamou as democracias do mundo ao “combate às tendências inquietantes que estão surgindo no seu próprio quintal” que “fornecem aos nossos regimes boas desculpas para suas próprias ações”.
Os acontecimentos alertados por Fattah estão hoje à mostra em Washington na batalha envolvendo dois projetos de lei antipirataria. Este confronto é o mais recente exemplo de como é difícil, mesmo para uma democracia estabelecida, proteger a liberdade e a propriedade intelectual na internet – e ao mesmo tempo também manter as pessoas protegidas. É um desafio que o Congresso dos EUA não tem conseguido enfrentar.
Mas Washington está despertando para a nova realidade: políticas habituais não são compatíveis com a era da internet, especialmente quando se trata de leis que a regem. E os protagonistas da web, junto de milhões de aficionados usuários que sentem que Washington está desconectada das suas vidas, perceberam que não podem ignorar o que sucede no Capitólio. Ambos os lados precisam agora enfrentar o já antigo choque de culturas entre Washington e a internet, com implicações que vão muito além de um blecaute temporário da Wikipédia.
Liberdades civis
Os políticos começaram a discutir a política da internet em meados dos anos 90, quando a web se desenvolveu como uma plataforma séria para o comércio, mas também para atividades que vão da pornografia ao ativismo político. As primeiras batalhas ilustravam o problema perpétuo das leis para internet: ao buscar proteger as pessoas, elas costumam não ter uma perspectiva futura e são amplas demais.
Para muitos críticos, estes foram os principais problemas com o projeto de lei no Senado conhecido como Pipa (Protect IP Act), cuja votação foi adiada para mudanças no texto, e da Sopa (Stop Online Piracy Act), na Câmara, engavetada depois de um violento protesto público.
Mas problemas similares de escopo e consequências remontam às primeiras medidas de regulamentação da internet. Foi o caso das contundentes batalhas políticas sobre a pornografia online. Em 1996, o Congresso aprovou o Communications Decency Act, que tornou crime a “transmissão” de material obsceno para menores pela internet. Em 1997, a Suprema Corte declarou a lei inconstitucional. De acordo com o juiz John Paul Stevens, a lei ameaçava “prejudicar um amplo segmento da comunidade online”, devido à sua linguagem muito vaga e a proteção dos menores infringia o “direito de livre expressão dos adultos”.
Em 1998, o Congresso tentou novamente impor a restrição com o Child Online Protection Act, exigindo que todos os operadores de serviços comerciais pela internet restringissem o acesso a menores no caso de os seus sites conterem “material nocivo a esses menores”, na forma definida pelos “padrões contemporâneos da comunidade”. Os autores do projeto argumentaram que a mesma lógica legal que se aplicava ao mundo físico deveria valer no digital e que a proteção do menor não limitaria a liberdade de expressão dos adultos.
A batalha legal durou dez anos. A lei jamais entrou em vigor porque a Suprema Corte concluiu que suas definições e remédios eram amplos demais para se evitar que o direito dos adultos fosse prejudicado.
O custo gerado pela aprovação de uma lei errada e que não se ajusta às mudanças tecnológicas é alto. Em 1986, no início da era do e-mail e alguns anos antes de ser inventada a World Wide Web como a conhecemos hoje, o Congresso aprovou o Electronic Communications Privacy Act, autorizando a polícia a requisitar o conteúdo do e-mail de qualquer pessoa sem necessidade de uma ordem ou mandado judicial caso os dados estivessem armazenados nos servidores de um terceiro por mais de 180 dias. Por quê? Porque em 1986, bem antes do Gmail, do Hotmail e outros serviços, ninguém imaginava que alguém desejaria ou precisaria armazenar dados confidenciais em servidores remotos por muito tempo. Assim, qualquer coisa com mais de 180 dias era tida como abandonada.
Num esforço para atualizar a lei, Google, Facebook, Microsoft, AT&T e outras companhias se uniram a grupos de defesa das liberdades civis para fazer lobby no Congresso. Foram barrados por parlamentares de ambos os partidos, preocupados com as consequências políticas de parecer indulgentes com o crime.
Força política
A disputa da semana retrasada é um exemplo do lobby em ação. De acordo com a empresa de pesquisa de finanças de campanha, MapLight, durante o período eleitoral de 2010 os 32 patrocinadores no Congresso do projeto Sopa receberam quase US$ 2 milhões em doações de campanha dos setores de entretenimento de TV, música e cinema, que defendem a lei, em comparação com um volume de doações de pouco mais de US$ 500 mil, da indústria de software e internet, que se opõe às novas regras.
O setor da internet – formado em grande parte por empresas jovens – tem se mostrado lento nesse lobby, mas as grandes empresas do setor, lideradas pelo Google, estão lutando para recuperar o atraso. O Google gastou quase US$ 6 milhões em lobby em 2011, segundo o Opensecrets.org. Em dezembro, deu uma festa luxuosa para funcionários do Congresso. O Facebook aumentou seu escritório em Washington que era quase nada em 2010. E no ano passado o Twitter contratou um ex-funcionário do Congresso para montar o escritório da empresa na capital.
Mas como disse Alexis Ohanian, do Reddit: “gastamos nosso dinheiro em inovação, não fazendo lobby”.
Em parte, essa atitude de não envolvimento é responsável pelos projetos Sopa e Pipa. Durante anos os membros do Congresso ouviram que eleitores queriam mais proteção contra crimes, terrorismo e violações dos direitos de propriedade intelectual. Mas não chegaram até os congressistas demandas igualmente vigorosas para que direitos e liberdades online fossem preservados. O Congresso pode não se comunicar com a internet, mas a internet também não se comunica com o Congresso.
Há mais de uma década, o professor de Harvard, Lawrence Lessig, escreveu um livro sobre como os códigos de programação atuam como uma espécie de lei, ao determinar o que as pessoas podem ou não fazer nas suas vidas digitais. E como as vidas digitais estão se interligando cada vez mais à física, ele passa a moldar também nossas liberdades.
A crença de que as façanhas da engenharia e da programação triunfarão sobre os códigos legais de Washington é uma das muitas razões que levam o pessoal do Vale do Silício a preferir se concentrar nas soluções técnicas de problemas em vez de gastar tempo e dinheiro em política.
As empresas de internet criaram instrumentos de mídia social que alimentaram as insurgências do Tea Party e do movimento Ocuppy Wall Street e ajudaram candidatos políticos a angariar apoio popular. Mas, antes da semana passada, essas empresas não tinham realmente usado o poder de suas próprias ferramentas para fazer lobby contra uma legislação contrária aos seus interesses. A “greve” da internet mudou isso, permitindo às empresas mostrarem sua força política de uma maneira que o setor de entretenimento não poderá facilmente copiar.
Propriedade intelectual
Em 1996, o compositor do Grateful Dead e ativista digital John Pery Barlow redigiu uma Declaração da Independência do Ciberespaço. “Em nome do futuro, digo a vocês do passado que nos deixem em paz. Vocês não são bem-vindos entre nós. Vocês não têm nenhuma soberania onde estamos reunidos.”
Desde então, nos 16 anos seguintes, o governo com certeza não deixou o ciberespaço em paz – porque muitos de “nós” queremos a sua proteção contra criminosos, pedófilos, valentões, espiões, xenófobos, terroristas.
Muitos desejam que o governo, que concebe o código legal, e as empresas, que definem o código de programação, nos defendam de ataques e roubos. Pagamos a eles por isso com parte da nossa liberdade, cliques, taxas de inscrição e impostos.
No entanto, a norma legislativa tende à eliminação, e não à gestão das ameaças online, sejam elas ataques cibernéticos ou roubo de propriedade intelectual. De algum modo hoje é aceita a aprovação de leis que estabelecem como pressuposto que os usuários são culpados até provarem sua inocência.
O Patriot Act e outras leis sancionadas autorizam agentes governamentais a acessar um enorme volume de comunicações digitais de cidadãos americanos sem mandado judicial ou mesmo sem uma suspeita de que um indivíduo pode estar envolvido num crime, como a lei exige para muitas buscas físicas.
A Sopa também é equivocada no aspecto da eliminação de ameaças. Para proteger a propriedade intelectual, pretende tornar os sites responsáveis pelas atividades dos seus usuários. Isso significa que os sites terão de monitorar todos os usuários e bloquear quaisquer transmissões ou postagens que possam resultar em acusação de violação de direito autoral.
Inovação política
O ciberespaço, como sublinhou o juiz Stevens em seu parecer em 1997, revogando o Communications Decency Act, é um “meio de comunicação peculiar, que não tem localização geográfica, mas está disponível para qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo”.
Assim, um parlamentar de Iowa pode votar a favor de um projeto de lei que acabará afetando os usuários da internet no Bahrein, que não terão nenhuma maneira de conseguir responsabilizá-lo. Isto porque serviços online usados no mundo todo têm sua base a nos EUA. Além disso, servidores de internet baseados em outros países que desejam estar acessíveis a usuários americanos também precisam respeitar a lei americana, afetando seus usuários de outros lugares.
E também, os governos em todo o mundo tendem a copiar regulamentos e leis sancionadas na América do Norte e na Europa, especialmente quando são uma oportunidade para exercer o poder via internet. Na Tunísia, onde a nova democracia está lutando para criar raízes depois de destituir seu ditador, islâmicos e outros conservadores apontam para leis recentemente aprovadas ou propostas nos países democráticos ocidentais como prova de que estão acompanhando a tendência global, procurando restabelecer a censura.
Por essas razões, ativistas em todo o mundo tiveram boas razões para se preocupar que um projeto de lei antipirataria como a Sopa pudesse obrigar sites do mundo todo que pretendam atrair uma audiência americana a instalar mecanismos de censura e monitoramento. Uma vez instalados, esses mecanismos dariam aos governo novas desculpas para exigir informações de usuários e a remoção de conteúdos.
Não é a primeira vez, nem será a última, que Washington tenta exercer poder sobre a internet de uma maneira que, para muitos americanos, os governados não deram o seu consentimento, sem falar na aprovação dos que estão conectados. Depois dos protestos, os projetos estão efetivamente mortos ou engavetados. Mas isso não significa que a revolução saiu vitoriosa.
Os defensores dos códigos digitais – e os milhões que dependem dos seus produtos – disseram não ao código legal que odeiam. Mas acabar com um inútil projeto de lei é só o primeiro passo. O próximo, mais vital, é a inovação política. Sem um enorme upgrade, esse sistema político continuará produzindo leis incompatíveis com a internet.
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[Rebecca MacKinnoné autora do livro Consent of The Networked: The Worldwide Struggle For Internet Freedom (Consentimento dos conectados: a luta mundial por liberdade na internet), membro da New America Foundation; especial para o Washington Post]