O brasileiro sempre teve fama de bom de briga. Não há um lutador que não tenha imaginado o combate entre Bruce Lee, referência maior das artes marciais em todos os tempos, e o brazuca Rickson Gracie, o lutador de jiu-jitsu que, com a credencial de 400 lutas e nenhum empate ou derrota, difundiu a versão brasileira da luta em todo o planeta e é hoje visto com um imbatível samurai dos tempos modernos. Mas, diante da impossibilidade do confronto – Bruce Lee morreu em 1973 –, a “pátria de luvas” se vê representada no “gladiador” Anderson Silva, o fenômeno dos meio-pesados que ninguém consegue levar à lona.
Mas tem brasileiro incomodado com a pancadaria. E que já tomou as providências para impedir que o esporte tome o lugar do futebol no pódio da preferência esportiva nacional. Trata-se do deputado José Mentor (PT-SP), autor do Projeto de Lei 5534/2009, que, como está definido em seu artigo 1º, veda às emissoras de televisão em todo o território nacional, abertas ou por assinatura, “a transmissão de lutas marciais não olímpicas”, ou seja, “combates físicos pessoais” não reconhecidos pelo Comitê Olímpico Brasileiro.
Em seu artigo 2º, o projeto diz que as lutas marciais “não violentas”, inclusive as não olímpicas, podem ser transmitidas pela TV, “desde que essa condição [não violenta] seja previamente atestada pelo Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana”. O descumprimento da lei, arremata o projeto, implica multa de R$ 150 mil, valor que será aplicado em dobro em caso de reincidência. Caso a emissora incorra em desrespeito à legislação, sua concessão pública será cassada.
Leia a íntegra do Projeto de Lei 5534/2009
O alvo prioritário do projeto é o chamado MMA – “Mixed Martial Arts”, ou Artes Marciais Mistas, o antigo “vale-tudo” que, mesmo com regras novas com a intenção de torná-lo menos sangrento, é proibido em países como a França e estados importantes de potências mundiais, como Nova York. Mas, fenômeno de audiência onde quer que esteja liberado.
Gladiadores globais
Fenômeno em canais de TV pagos, a principal competição de MMA, o Ultimate Fighting Championship – UFC – movimenta, anualmente, R$ US$ 5 bilhões (cerca de R$ 9 bilhões), com transmissões para 145 países e, segundo estimativas, tem audiência de 350 milhões de pessoas em todo o mundo. De olho no potencial quinhão de telespectadores, as Organizações Globo, uma dos maiores grupos de comunicação do planeta, negociou os direitos de transmissão das lutas em canal aberto. E foi além: elegeu seu principal narrador, Galvão Bueno, como mestre de cerimônia. Um bordão já foi lançado pelo locutor global oficial de sete Copas do Mundo: para ele, os lutadores de MMA são os “gladiadores do terceiro milênio”.
“Eu me lembro das primeiras edições do UFC, em 1993. […] O Royce [Gracie, faixa-preta do esporte e tido como lenda do esporte] ganhou três dos quatro primeiros. Um ele não ganhou porque sentiu. […] É empolgante, uma coisa que arrepia”, lembra Galvão, acrescentando que fez uma “visita recente” ao Coliseu, em Roma, e conheceu as estranhas da arena em que os gladiadores de outrora enfrentavam até leões. “A sensação que você tem é mais ou menos a mesma.” (clique aquie confira a explicação de Galvão para o uso do termo).
Para o autor do projeto de lei, o interesse da Rede Globo, na esteira do sucesso mundial de audiência alcançado pelas batalhas marciais, só piora a questão da influência das lutas em crianças e adolescentes. Além de a tramitação da matéria ficar sujeita a pressão – o famigerado lobby parlamentar – não só da Vênus Platinada, mas de diversas emissoras de TV que lucram com a transmissão dos eventos. “A coisa só se agrava. A situação fica ainda mais difícil quando a principal TV do país, com seu principal animador [Galvão Bueno], resolve promover esse tipo de barbárie”, criticou o deputado, em entrevista ao Congresso em Foco. Ele diz que o MMA é “prejudicial para qualquer ser humano”. “No Canadá, a instituição que representa os médicos está fazendo um trabalho para proibir.”
Dinheiro com o sangue alheio
José Mentor só concorda com Galvão Bueno em um ponto: o MMA parece mesmo com as batalhas de arena dos antigos gladiadores romanos. Mas, para Mentor, isso não é nada glorioso. O que acontecia no Coliseu de Roma era uma total barbárie. “A diferença é que lá o objetivo deliberado era matar. O imperador assistia, as arenas enchiam de gente, era uma coisa muito popular. Mas isso era na antiguidade, e a sociedade já evoluiu, né?”, avalia o parlamentar paulista, apontando outro elemento de diferenciação – a exploração comercial do esporte, prática universal na pós-modernidade. “Tem pouca gente ganhando muito dinheiro com o sangue alheio.”
José Mentor garante que não medirá esforços para ver seu projeto aprovado e o assunto posto em discussão junto a segmentos sociais. Ele disse ter articulado com colegas de Câmara, como o deputado Emiliano José (PT-BA), a realização de audiências públicas com setores diversos, com o intuito de ouvir médicos, psicólogos, professores de educação física, lutadores, entre outros, “para ver o que a sociedade prefere”.
A reportagem procurou a Rede Globo para saber qual a postura da emissora em relação ao projeto de Mentor. Mas, por meio da divisão de imprensa, a Globo diz que não comenta proposições legislativas.
O deputado José Mentor demonstra otimismo em relação à tramitação do projeto. A depender do apoio que diz ter recebido, em manifestações livres da sociedade, Mentor já considera a matéria aprovada – ao menos por quem conduz os parlamentares ao exercício do mandato, os eleitores.
“É muita adesão. Mas é muita! Depois da gravação de um programa sobre o tema [na TV Câmara], eu recebi uns 20 e-mails só naquele dia. Deles, só dois ou três eram contra [o projeto]. E isso só por conta daquele debate na TV Câmara. Eu pensei que estivesse sozinho nisso, mas tem muita gente contra [a luta] e muitas iniciativas nesse sentido”, afirmou Mentor, mencionando o fato de a audiência da emissora institucional ser de “traço” – símbolo que atesta o baixo número de telespectadores ligados em determinado canal, insuficiente para constar em estatísticas de medição de audiência. O deputado imagina que, em grandes emissoras, o apoio seria ainda maior, com base no recorte de retorno da TV Câmara.
Para o deputado, o fascínio exercido pelo esporte está mais relacionado à questão estética do que ao fator lúdico embutido em toda atividade desportiva. “O que atrai os jovens é o físico atlético dos lutadores. Hoje se cultua o físico, as moças gostam, os rapazes querem ficar igual, ‘sarados’, como dizem. Os psicólogos vão poder explicar esse fenômeno”, acrescenta.
José Mentor sabe que sua tarefa será difícil, e que seu projeto terá forte rejeição dos defensores da livre escolha e dos direitos de produção de conteúdo e consumo. Ele lembrou ainda que o presidente do UFC, Dana White, tem planos mais pretensiosos para conseguir a aceitação da luta junto à opinião pública mundo afora.
“Eles vão defender a luta. O dono do UFC vai querer transformá-la em uma luta olímpica. Aí, pra mim acabou o problema. O que é que vamos falar?”, destaca Mentor, lembrando que o objeto do projeto é proibir a exploração televisiva de esportes não olímpicos. Nesse sentido, observa o deputado, não haveria como contestar um esporte enquadrado nas normas de segurança estipuladas pelo Comitê Olímpico Internacional – caso do boxe, em que os atletas têm de usar, além das luvas, capacete, protetor de dente e região pélvica.
As críticas de Mentor ganham ressonância na internet. Neste vídeo abaixo, veiculado no Youtube sob o título “Vale tudo por dinheiro”, o autor da postagem faz duras críticas à “ganância” dos que lucram com o esporte, incluindo a própria Rede Globo, diante de um público “sedento de sangue”. Às imagens, com closes de faces deformadas de lutadores banhados em sangue, são arrematadas por um texto que fustiga os “lobistas” parlamentares, “bancada” arregimentada pelos donos do UFC por meio de “agrados”.
“São parlamentares muito bem recebidos por [Dana] White, em camarotes nas exibições no Brasil e nos Estados Unidos. Certamente recebem outros agrados, pois quem conhece o Congresso sabe que camarote vip é pouco para eles”, diz o usuário “Doniamaro”, dando nome aos bois – além de Magno Malta, a “bancada da luta” estaria representada pelos deputados Sérgio Guerra (PSDB-PE), Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), Fábio Faria (PSD-RN) e Acelino Popó (PRB-BA) – este, o famoso ex-campeão mundial de boxe.
Assista ao vídeo de 55 segundos.
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Magno Malta defende o MMA
Para o senador Magno Malta (PR-ES), praticante de lutas e patrocinador entusiasta de lutadores de MMA, “algo estranho” está por trás das intenções de José Mentor. “Algo bom não é”, disse Magno ao Congresso em Foco, lembrando que, apresentado em 2009, a abordagem do projeto vem à tona em ano de eleições municipais. “Mas ninguém pode barrar a força popular, ninguém pode barrar a vontade das pessoas em mudar de vida. Esse esporte é um grande instrumento de combate e prevenção às drogas, começou a ganhar as favelas, os guetos, dando uma oportunidade de futuro para as pessoas que antes estavam entregues às drogas, perdidas no crime”, acrescentou.
Para Magno, o projeto de Mentor é um “resquício de censura” e representa um “retrocesso” na legislação brasileira. Mas, emenda o senador, a matéria não será exitosa. “Esse projeto não tem futuro. Sou um parlamentar que nunca fugiu da luta. Vou fazer um enfrentamento com ele [Mentor], e vamos sair vencedores. As pessoas vão ficar do nosso lado, e não do lado de quem quer coibir um esporte que tira tantos jovens nas drogas, dá oportunidade para tanta gente”, provoca.
O senador capixaba diz ainda não temer iniciativas semelhantes àquela já formalizada pelo deputado Mentor. Ele lembra que o Ministério da Justiça e nomes como o senador Wellington Dias (PT-PI), que recentemente discordou de um projeto de Magno sobre a inclusão da luta em escolas, são obstáculos a serem transpostos por meio do debate.
“Me sinto mal [com as objeções], envergonhado. Eu chamaria isso de atitude de covardia. Eu convivo há 30 anos com família que choram todos os dias por causa de seus filhos drogados, sem oportunidade. Esse esporte é uma contribuição ao combate contra a violência, que o governo de que ele [Wellington] faz parte não consegue resolver”, lamenta Magno, que também pertence à base de sustentação do governo que critica.
Pelos ringues da vida
A disposição de Magno Malta para a “briga” não se resume ao plano ideológico. Praticante de boxe e espécie de tutor de diversos lutadores brasileiros, o senador é figura fácil nos principais eventos da luta no Brasil. Em 31 de janeiro passado, ele no “Pink Fight MMA”, realizado em Porto Seguro, Bahia, a primeira competição do esporte para mulheres no país e versão feminina do “Jungle Fight” – torneio em que o ex-líder do PSDB no Senado, o faixa-preta de jiu-jitsu Arthur Virgílio (AM), era presença garantida.
Neste vídeo abaixo, a reportagem da TV Sul Bahia postada no Youtube mostra a presença da TV Globo no Pink Fight, em mais um sinal do interesse da emissora no universo das competições de vale-tudo. O microfone global aparece aos três minutos de filme. Confira:
“Se hoje o Brasil tem respeito mundial no esporte não é no futebol. É na luta”, disse à reportagem Magno Malta, que chega a custear alimentação, estadia e treinamento de alguns atletas em Brasília e no Espírito Santo, seu reduto eleitoral. “O MMA é muito profissional, e os atletas são muito bem treinados, com muita técnica, e preparadíssimos para a luta. Ninguém coloca pessoas despreparadas dentro de um ringue pra tomar soco de ninguém à toa”.
Luta na escola
O senador adiantou à reportagem que pretende apresentar projeto de lei que inclui lutas marciais no currículo instituições de ensino, como parte de seu projeto de recuperação de crianças e jovens carentes em situação de vulnerabilidade. Um dos criadores do Projeto Vem Viver, que atua em Vila Velha há cerca de 30 anos, Malta acredita que a violência não está nas artes marciais, mas em outros setores da sociedade. “Devia haver um projeto para impedir que homens públicos, artistas, atores de televisão, cantores apareçam fumando, bebendo, por terem tanta visibilidade”, considera.
Para o senador, diversos esportes apresentam um nível até mais alto de violência, e nem por isso são proibidos. Ao contrário, são tradicionais, mobilizam multidões e movimentam gigantescas cifras junto ao mercado consumidor. “Violento é briga de torcida, tiro, rasgar nota de carnaval”, diz Magno, referindo-se ao tumulto causado por vândalos na apuração de notas no carnaval de São Paulo, na última terça-feira (21). “Você vê o tempo todo perna de jogador de futebol quebrada na televisão, e disso ninguém reclama. Existe uma violência muito grande em todo tipo de esporte em que há contato.”
Além do profissionalismo visto por Magno nas lutas de vale-tudo, há ainda outro elemento favorável ao esporte apontado pelo senador – o culto à saúde. “Os caras do MMA não querem tomar nem guaraná. Eles são geração saúde, são muito saudáveis e se cuidam muito”, diz. Para Magno Malta, o MMA não seria explorado na telinha da Globo se não fosse sua “boa imagem” (o tema MMA foi inserido na novela “Fina Estampa” por meio do personagem Wallace Mu, campeão mundial na trama vivido pelo ator Dudu Azevedo).
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[Fábio Góis, do Congresso em Foco]