Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Cemitério virtual

Você pode cutucar um defunto. Não recomendo, mas pode. Pode também curtir, e até compartilhar. Também não recomendo. Você só não pode é adicionar – seu pedido de amizade, é óbvio, cairia em ouvidos para sempre moucos. Melhor deixar quieto.

Que conversa é esta? Estou apenas divagando a partir de um artigo que li faz uns dias, a respeito de um problema (mais um) em que nunca havia pensado. Seguinte: a pessoa abre uma conta no Facebook, farta-se de acumular amigos, curtir, cutucar, comentar, compartilhar, toda aquela lambança social-virtual que nós conhecemos, até que um dia, desculpe tocar no assunto, estica as canelas. Na vida real, bem entendido. Porque na vida virtual, e este é aqui o centro da questão, ela continua viva. Você já tinha pensado nisso? O fato é que o Facebook vai aos poucos se coalhando de defuntos. Virou um cemitério virtual.

É possível que você, depois de bater os olhos no título acima, tenha se mandado para leitura mais amena. Lamento. Mas não posso fazer nada. O assunto que tenho hoje é este, as almas penadas do Facebook. Tinha outro – ia escrever sobre a fauna do parque aonde vou malhar (em ferro frio), mas descartei o texto semi-escrito, pelo menos por ora, por desconfiar que você não ia acreditar se eu contasse o que vi lá no domingo passado: um grupo de rapazes fumando narguilé. Ficaria parecendo que botei o narguilé e os moços, nada árabes, por sinal, para enfeitar a crônica. Que nem meu amigo Fernando Mitre, que ao redigir uma notícia sobre um príncipe a passear pela Floresta Negra não resistiu à tentação de fazer pousar um pássaro igualmente negro nos ombros de Sua Alteza.

Equivalente eletrônico do formol

Pode ser que eu esteja falando sozinho, mas vou em frente. A tal matéria de fato mexeu comigo. Me cutucou, curti, quero compartilhar. Acendeu em mim a suspeita de que talvez haja, sim, vida após a morte. Senão eternidade, pelo menos uma sobrevida indefinida. O sujeito que adere ao Facebook não sabe que nem a morte o tirará de lá.

Duvida? Então repare: a rede está cheia de defuntos que, literalmente sem saída, ali permanecem, insepultos. Morreu, tá morrido? Não no Facebook. Fica lá, com aquela cara confiante de quem não ia morrer, fazendo planos para o churrasco a que não vai comparecer por motivo de falecimento. Periga ser mesmo a vida eterna. Não importa se a criatura foi ou não virtuosa; virtualmente, a sua sobrevida está assegurada. Imortalidade assim, nem na Academia de Letras.

Parece haver no Facebook um equivalente eletrônico do formol. Ali você permanece em melhores condições do que a múmia do Lênin naquela câmara mortuária em Moscou. No caso do Lênin, pelo que li, pouco lhe resta hoje de original, tanto remendo sua carcaça vem recebendo, tanto quanto o comunismo, desde o falecimento, em 1924. No Facebook, estaria mais bem preservado.

“Relacionamento póstumo”

Estou longe de ser um conhecedor da rede, mas até onde a minha cansada vista alcança as coisas se passam da seguinte maneira: caiu na rede, caído ficará. Pois só você pode sair do Facebook, você ou quem possua a sua senha. E quantos conhecem a senha do outro? Pois se nem da minha consigo me lembrar. Entrei, faz uns dois anos, porque estava lançando um livro (O Espalhador de passarinhos & Outras crônicas, à venda nas melhores livrarias) e queria divulgá-lo. Pensei assim: quem vê Face, vê book. Não é que funcionou? Só você não comprou ainda o seu exemplar. Agora suponha que eu, por fastio da literatura ou da espécie humana, queira cair fora. Como, se não tenho a senha? Talvez o pessoal do caderno de informática possa me orientar. Na falta disso, minha insignificante pessoa seguirá sendo, na rede, após o fatal batimento de botas, algo como a mais indelével das tatuagens.

Se saída não houver, talvez eu tenha mesmo que me acostumar. Com algumas alterações, naturalmente, no meu perfil no Facebook. O item “em um relacionamento sério” (sou mais um relacionamento divertido) pode virar “em um relacionamento póstumo”. Vamos manter o cutucar, o compartilhar, o curtir. Mas que tal introduzirmos a opção “cremar”?

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[Humberto Werneck, do Estado de S.Paulo]