Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Revendo tradições

Os cientistas usam cada vez mais a internet para criar ferramentas que auxiliam na pesquisa e em sua divulgação. A mais recente novidade, que promete abalar tradições, é o site Peerage of Science(PoS). Criada por biólogos finlandeses, a página é uma espécie de plataforma de troca de favores que apresenta uma nova – e mais rápida – maneira de submeter artigos, proceder com a revisão por pares e selecionar trabalhos para publicação. O site funciona como uma comunidade virtual. Qualquer um que prove ser um pesquisador pode subir seu artigo para ser avaliado pelos mais de 500 cientistas de mais 30 países que compõem o corpo de revisores e, quem sabe, receber uma oferta de publicação em um dos periódicos cadastrados no projeto.

Por enquanto, há três periódicos associados ao PoS: Ecography, Ethologye AMBIO– todos de biologia, por ser esta a especialidade de seus fundadores e da maioria dos revisores. Para ser um revisor, é preciso ser convidado por um membro ou se oferecer e provar que tem capacidade para tal. O processo de revisão é voluntário e anônimo. Quando o autor sobe seu manuscrito, sugere palavras-chave para o estudo e escreve também uma mensagem explicando por que seu texto deveria ser revisado. Os revisores interessados podem se oferecer para avaliar o trabalho dentro de um prazo estabelecido.

A revisão é feita em forma de ensaios que podem ser vistos tanto pelos autores quanto pelos editores dos periódicos associados. Assim, não há artigo que seja recusado, pois não existe o tradicional processo de submissão para um periódico. A lógica é de certa forma inversa. As revistas interessadas é que fazem a oferta de publicação diretamente ao autor. Dessa maneira, ele não perde tempo enviando seu trabalho para mais de uma editora.

Reduzindo a carga de trabalho

“Alguns velhos conceitos não existem no PoS”, explica um dos três fundadores da plataforma, o ecólogo Janne Seppanen, da Universidade de Jyväskylä, Finlândia. “No nosso site, os editores ficam anônimos enquanto acompanham o processo de revisão por pares que lhes interessa e ninguém fica sabendo se eles desistem do artigo sem fazer oferta.” Ou seja, não existe a rejeição nua e crua.

O PoS é gratuito para autores e revisores e funciona com base em um sistema de créditos. Todos começam com o balanço zerado. Quando um autor ou um coautor envia um manuscrito, seu saldo fica negativo, mas pode ser recuperado caso ele também faça uma avaliação do trabalho de um colega. A recíproca é verdadeira: os revisores recebem créditos por cada avaliação feita e o saldo positivo lhes permite enviar manuscritos próprios para revisão.

Os periódicos pagam uma taxa para participar do projeto e os criadores da plataforma garantem que o valor não ultrapassa os gastos que as editoras normalmente têm para fazer o processo de revisão por conta própria. Segundo Seppanen, o maior objetivo da plataforma é tornar o processo de revisão e publicação de artigos mais eficiente. “Com o nosso sistema, os autores podem focar na ciência, em vez de se concentrar nas submissões de seus artigos; os revisores ganham alguma recompensa por seu trabalho e os editores ganham novas oportunidades com a redução de sua carga de trabalho”, pontua.

Limitações da revisão

Seppanen conta que teve a ideia para o projeto por ser ele mesmo uma vítima do longo processo por trás da publicação de um artigo. “Quando eu era um jovem cientista, costumava me desesperar com o deadline de bolsas de estudo que dependiam de publicações de artigos enquanto meus trabalhos mais importantes estavam presos pelo desordenado e lento processo tradicional de revisão por pares”, lembra.

A crítica ao atual sistema de revisão, seja por sua demora ou pela sua parcialidade, ganha espaço. Muitos cientistas se queixam de favoritismo durante as revisões encomendadas pelas editoras e também da baixa qualidade das revisões. O biólogo Rafael Maia, da Universidade de Brasília, é dos cientistas insatisfeitos com o modelo atual de revisão e publicação. Maia é também o primeiro brasileiro a fazer parte do PoS como revisor, convite que lhe foi feito por Seppanen depois de um comentário do pesquisador sobre o projeto em seu Twitter.

“As limitações da revisão por pares como é feita hoje estão ficando cada vez mais evidentes”, afirma. “Revisões com comentários pouco construtivos, feitas às pressas, não são raras. Já vivi situações em que as mudanças exigidas por um revisor são exatamente o que é criticado quando o artigo é enviado a outra revista. Outras vezes, após meses em revisão, mesmo com comentários positivos e poucas sugestões de mudança, o editor decide que o artigo não se adequa ao escopo da revista.”

Re-volição por consenso

No PoS, além de os revisores não terem, a princípio, qualquer ligação com as editoras, eles recebem incentivos para melhorar seu trabalho: são avaliados pelos pares, com nota de 0 a 5, e as melhores revisões podem ser publicadas, se houver concordância de autores e revisores, no periódico on-line do projeto, o Proceedings of Peerage of Science – que ainda não teve sua primeira edição.

“Um cientista muito conhecido em seu campo recebe muitos pedidos de revisão por semana, o que implica que ou ele vai descartar vários deles ou fazer uma avaliação rasa”, exemplifica Janne Seppanen. “O nosso site incentiva os pesquisadores a fazer avaliações de qualidade.”

O Peerage of Science vem sendo chamado de revolução por cientistas e meios de comunicação estrangeiros, mas para Seppanen essa não é a melhor definição. Segundo ele, a criação do projeto é um movimento inevitável e natural em resposta ao modelo tradicional de revisão por pares. “Chamaria o nosso projeto de uma re-volição por consenso, ou seja, uma tomada de decisão motivada por um sentimento compartilhado de que essa ideia pode oferecer uma forma melhor de revisão por pares”, diz. “Apesar dos entraves do processo tradicional de revisão e publicação, não procuramos derrubar ninguém. Acredito que por algum tempo o PoS será apenas uma maneira complementar de fazer a revisão por pares e submeter artigos.”

“Transmissão de informação é rápida, transparente e aberta”

Revolução ou não, o PoS se apresenta como a alternativa atual mais ambiciosa ao sistema tradicional de publicações, que vem sofrendo críticas cada vez mais duras da comunidade científica, a exemplo do boicote em curso à editora holandesa de periódicos científicos Eselvier.

Nositede abaixo-assinadoscontra a editora, mais de seis mil cientistas pedem, entre outras reivindicações, por mudanças na revisão por pares. “O modelo corrente está obsoleto”, diz o engenheiro Vinicius Acaro, da Universidade de Campinas. “O método de revisão por pares para assegurar a qualidade não pode se sustentar com o número exponencial de artigos. Uma revolução é necessária.”

Alguns cientistas, como Rafael Maia, acreditam que este é apenas o começo de uma luta difícil. “O sistema editorial científico atual é lucrativo e resistente a mudanças, portanto acredito que vai caber a pesquisadores e sociedades científicas investir mais no potencial da internet para mudar esse quadro”, diz. “A transmissão de informação hoje em dia é rápida, transparente e aberta, mas a comunicação científica se aproveita pouco dessas vantagens, o que é irônico, visto que o progresso científico depende diretamente da rapidez de difusão de conhecimento e do compartilhamento de informação.”

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[Sofia Moutinho, do Ciência Hoje On-line]