Nem todas as invenções (e descobertas) da humanidade têm sua história devidamente registrada, seu passo a passo detalhado com fotografias e elaboração de precisa linha do tempo. Por exemplo, pouco sabemos como se deu a invenção da roda, mas podemos imaginar algo rolando pela primeira vez de uma caverna… há milhares de anos.
Menos ainda sabemos sobre a descoberta do fogo, mas podemos inferir como verossímeis a realização filmíca de Jean-Jacques Annaud, A Guerra do Fogo, de 1981. O filme trata de coragem, busca e bravura na pré-história e narra a saga de um homem das cavernas que é mandado para longe de seu povo para procurar fogo. Motivo: a única chama da sua tribo, de onde faziam fogueiras, se apagou.
Agora, se olharmos à nossa volta com olhos realmente curiosos, logo descobriremos quão extensa é nossa ignorância acerca da história da invenção do grampeador, das folhas de papel que enfeixadas de certa maneira atendem pelo nome de livro, ou desse pequeno pedaço de metal, com algumas ranhuras, a que chamamos chave. E por aí vai; nos transformamos em espectadores do avanço de incansável dízima periódica a mapear milhares de pontos obscuros, seja à gênese ou à história deste e daquele objeto, invenção ou descoberta.
Camaleão pós-moderno
Mas a invenção mais impactante e que mudou por completo a vida ordenada da sociedade como a conhecemos é, certamente, o computador pessoal. E o bom: sua história está minuciosamente escrita, seja porque é algo bem mais recente, remonta a fins dos anos 1970, seja porque boa parte dos inventores, promotores e impulsores do formidável invento encontram-se ainda vivos e são nossos contemporâneos. Melhor seria se ainda não existisse a lacuna Steve Jobs.
Segundo o Computer History Museum, em 1971 foi lançado o primeiro “computador pessoal”: o Kenbak-1. E era uma engenhoca ousada: possuía 256 bytes de memória, não tinha CPU e o preço conforme anúncio na revista Scientific American eram exatos 888. Dólares.
Em 1975, surge o Altair 8800, um computador pessoal baseado na CPU Intel 8080. Custava cerca de 400 dólares e se comunicava com o usuário por meio de luzes que piscavam. Dentre os primeiros usuários estavam o calouro da Universidade Harvard Bill Gates e um jovem programador, Paul Allen, que juntos desenvolveram uma versão da linguagem “Basic” para o Altair. Pouco tempo depois, a dupla resolveu mudar o rumo de suas carreiras e criar uma empresa chamada Microsoft. Pronto, esta é a gênese do computador pessoal.
Mesmo sem nos darmos conta, muitas coisas deixaram de existir para que houvesse espaço para o computador e suas quase inumeráveis “habilidades”:
** Livros – Ainda tem gente que diz que jamais deixaria o prazer de manusear um livro tal como o conhecemos (papel, lombada, capa, miolo e orelhas) por um livro digital (alimentado por energia elétrica, com páginas, entrelinhas, luminosidade, tipo e tamanho de caracteres) moldado para atender o gosto do freguês. Também pensava assim até que em 2009 comprei meu primeiro Kindle, leitor digital produzido pela Amazon e dependente de luz externa, e em 2010 adquiri meu primeiro iPad, leitor digital vendido pela Apple Computers que apresenta paleta de cores quase ilimitada e dispensa iluminação externa. Ainda não conseguiram duas coisas necessárias a satisfazer o velho e gostoso hábito de leitura: preservar o característico cheiro de papel, emanando da tela de cristal líquido e… poder visualmente observar o volume das páginas lidas e aquele que falta para terminar a leitura do livro.
Mas, se perdemos algo lúdico, essa sensação do toque, da memória da pele, ganhamos em outras comodidades, como poder navegar na livraria online e até mesmo ler um capítulo do livro desejado antes de comprar. E um detalhe gigantesco: o preço é inferior a metade do preço que pagaria por um livro-papel, por um livro tradicional.
Nesse sentido o computador é o próprio camaleão da pós-modernidade: pode ser um livro, depois uma tela de pintura, depois um jogo, depois um aparelho de som, em seguida uma tela para assistir tevê, filmes, seriados. No fundo, o camaleão começa e termina com o que existe desde o início: um equipamento eletrônico.
O que não muda
Jornais – É fato e ultrapassa as fronteiras dos gostos e fantasias: as novas gerações simplesmente deixaram de ler jornais. A começar pela recusa em não mais fazer assinatura de jornais impressos. E desapareceu com a mesma “serenidade” com que deixou de existir o leiteiro que entregava o produto de casa em casa e o empregado da lavanderia que buscava a roupa suja de casa para lavar. Sumiu também o datilógrafo e, por motivos óbvios, o que temos mais próximo dessa antiga profissão das empresas e escritórios é o que atende pelo nome de digitador.
As pessoas nascidas no limiar dos anos 1990, hoje na faixa dos 20 anos de idade, cultivam de forma quase instintiva o novo hábito de ler jornais, revistas e livros através da internet, acessível em computador de mesa, notebook, netbook, tablet ou smartphone conectado à Grande Teia.
A tendência natural é que, diante do rápido aumento de dispositivos móveis de acesso à internet, a leitura eletrônica finque raízes profundas no imaginário humano que abarca tudo o que seja atinente à prática da leitura. E para que tal realidade se consolide não tardará o dia em que em nível planetário os editores de jornais e revistas se associem comercial e financeiramente com os gigantes da web (Apple, Microsoft, Google, Amazon) e também as mais importantes empresas de telefonia celular para desenvolver um modelo pago de assinatura digital. É só esperar para ver.
Na última cena do filme de Jean-Jacques Annaud, os dois personagens centrais aparecem olhando para uma grande lua no céu e a barriga de uma mulher grávida é iluminada, mostrando que a vida naquela tribo continuou, apesar de modificada por integrante de uma tribo distinta. E, também, graças a tudo o que foi aprendido pelo herói do fogo.
Assim também já começa a acontecer com nosso hábito de leitura. Novas tecnologias logo são assimiladas e as fronteiras do conhecimento são novamente ampliadas mais e mais. O que permanecerá como imutável, e ainda por muito tempo, é que sempre será um humano que recolherá, buscará e zelará pela veracidade das informações a ser transmitidas pelos meios mais diversos.
É com essas informações que alimentaremos nossa fornalha mental, aguçaremos nosso senso crítico e levamos avante uma civilização em constante evolução.
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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]