“Antes de Kony 2012, o maior sucesso viral do YouTube era Susan Boyle. Agora, o mundo está discutindo como eliminar a distância entre o mundo que temos e o mundo mais seguro e pacífico que todos querem.” As palavras são de Emma Ruby-Sachs, advogada e jornalista que dirige campanhas para a ONG Avaaz.
Ela sabe do que está falando. O Avaaz é a ferramenta de abaixo-assinados online mais usada do mundo hoje. No seu site, há espaço para causas das mais variadas, em todo o mundo: contra o acordo antipirataria Acta, de apoio à oposição na Síria, contra a usina de Belo Monte. Uma das mais bem-sucedidas, com 1,2 milhão de assinaturas, é em prol de uma espécie de abelha ameaçada por um pesticida da Bayer.
Um milhão de assinaturas é um mero zumbido perto do estrondo que foi Kony 2012. Com o vídeo dirigido por Jason Russell, o mundo do ativismo online foi jogado num patamar muito mais alto do que aquele com que estava acostumado. Até sexta-feira passada, eram 110 milhões de visualizações na web. Com isso, o filme sobre o “senhor da guerra” de Uganda se tornou oficialmente o maior viral de todos os tempos. E, como lembrou Emma Ruby-Sachs, é o único dos 15 mais viralizados da história que trata de uma causa.
“O vídeo é uma ação exitosa, o objetivo era informar pessoas sobre a causa e conseguiram. Seattle, em 1999, Praga, em 2000, e Gênova, em 2001, também conseguiram mobilizar as pessoas online”, lembra Kelly Prudencio, pesquisadora e professora de pós-graduação de comunicação da Universidade Federal do Paraná. “Mas naquele momento o único objetivo era reunir as pessoas para ir à rua protestar contra a OMC, o FMI, o Banco Mundial e o G8. Hoje, o ativismo social só pode acontecer online.”
É a militância que não sai na rua, mas se espalha através de links, e-mails e redes sociais. O filme mostrou o quão poderosa pode ser essa onda de cliques dos cidadãos comuns.
Kony 2012 mobilizou milhões de cidadãos americanos na rede, que exigiram posicionamento do Congresso americano e do presidente Barack Obama a respeito da questão. Surtiu efeito: “Parabenizamos a mobilização das centenas de milhares de americanos”, disse o porta-voz da Casa Branca, Jay Carney.
O filme ganhou cacife para interferir na política externa do país mais poderoso do mundo. A intenção em inserir Kony na agenda do governo americano em 2012 é clara. “Essa questão simplesmente não é tema importante no radar da política externa dos EUA”, diz John Prendergast, membro de outro projeto humanitário, no vídeo.
“Desde que o governo disse que seria impossível, não sabíamos o que fazer a não ser contar para todo mundo sobre Jacob e as crianças invisíveis”, narra o diretor do vídeo e cofundador da Invisible Children. “Mostrar esse filme para quantas pessoas fosse possível de forma que não poderíamos ser mais ignorados. E fizemos. Pessoas se chocaram e a conscientização virou ação. Começamos algo, uma comunidade.”
Esse processo gerou discussões sobre as consequências do ativismo na web. Por um lado, questões sérias ganham um alcance antes impensável com a internet e as redes sociais. Mas, por outro, o imediatismo que caracteriza grande parte desse engajamento gera preocupação. “É preciso tempo para se comunicar, entender e tomar decisões politicas”, opina Kelly Prudencio. “O ativismo na internet força a barra nesse sentido. O vídeo do Kony obriga as pessoas a assimilarem um conteúdo complexo muito rapidamente e tomar atitudes a partir dele.”
A professora da UFPR lembra que as ONGs ambientalistas foram das primeiras a usar imagens e vídeos espetaculares para chamar a atenção do mundo pela internet. Movimentos sociais passaram então a perceber o poder do novo meio de propaganda política e seguiram a onda. Para ela, o meio se torna efetivo ao passo que obriga os tomadores de decisão a acatar as demandas que dele surgem. “Na medida que o ativismo coloca questões como essa do Kony como incontornáveis, ele obriga o sistema político a responder, se não o governo perde legitimidade”, diz.
Logo que o vídeo apareceu, choveram críticas sobre a produção por pessoas incomodadas com a simplificação exagerada do assunto. Ethan Zuckerman, cofundador do Global Voices e diretor do Centro de Mídia Cívica do Massachusetts Institute of Technology (MIT), foi um dos engrossam o coro da oposição.
“A campanha é atraente porque oferece uma narrativa bem simples: Kony é um personagem mau, um ser humano horrível cuja captura acabará com o sofrimento do povo do norte da Uganda. Se fizermos a nossa parte, influenciarmos pessoas poderosas, a mais potente força militar do mundo agirá e Kony será capturado”, diz Zuckerman.
“É uma história com uma solução simples e que se apoia em narrativas existentes sobre uma suposta ingovernabilidade da África, o poder militar dos EUA e a necessidade de se trazer à tona conflitos desconhecidos”, afirma ele, apontando “consequências imprevisíveis” como o apoio internacional ao ditador de Uganda, Yoweri Museveni, já no seu quarto mandato, escolhido em uma eleição vista como fraudada por observadores da União Europeia, segundo Ethan.
Kony 2012 não veio para explicar, mas para engajar. E deixa isso bem claro em seu trailer, publicado no início de janeiro no YouTube. Ao final do clipe, aparece na tela a mensagem: “Não estude história, faça história”.
“Você não pode fazer história se não aprende com ela”, disse em entrevista à Al Jazira a jornalista ugandense Rosebell Kagumire, uma das maiores críticas da “desinformação” sobre Uganda e os ugandeses. Emma Ruby-Sachs, do Avaaz, condena a abordagem. “Não há necessidade de simplificar ou distorcer os fatos para comunicar de maneira efetiva e eficiente”, declarou.
É um dos dilemas da comunicação, segundo a professora Kelly Prudencio. “O que vale mais? Mostrar e espetacularizar ou deixar de mostrar e deixar como está? É o dilema da comunicação”, analisa. “Na internet isso fica maior porque muita gente se posiciona, ‘curte’, assume uma coragem que não teria no contato direto. O reino da expressão que é a internet tem essas consequências. Uma positiva, que faz o que antes era particular ganhar a esfera pública. Uma negativa, com tanta profusão de questões fica difícil discernir o que é relevante.”
No Brasil, um dos exemplos de campanha online que obteve resultados foi a da Lei do Ficha Limpa, coletando mais de 1 milhão de assinaturas só pela internet, levou o projeto para o Congresso e sua subsequente aprovação. Pedro Markun, criador do Transparência Hack Day, comparando o Ficha Limpa a Kony 2012, analisa que os dois assuntos foram apresentados para mexer com as pessoas, mas ambos pecam na simplificação.
“Eles simplificam um tema que é complexo e perdem a chance de ter uma discussão mais interessante”, diz Markun. “Matar o Kony não vai fazer o ‘império ruir’. É irresponsável provocar isso. Por outro lado, muita gente que normalmente não se envolve em nada veio falar comigo sobre o vídeo. Isso abre espaço para se discutir mais amplamente o problema da África. Se dezenas fizerem disso a causa da vida já é uma vitoria.”
O estudante Henrique Carneiro, de 20 anos, e a jornalista Rachel Azevedo, de 27 anos, são alguns dos que resolveram fazer alguma coisa. Henrique assistiu ao vídeo e pouco depois já criou a página “Kony 2012 Brasil” no Facebook. Depois de algumas horas, cerca de 100 pessoas já haviam curtido, número que já passa de 5 mil. “O vídeo pede para a gente se mobilizar, daí pensei o que eu poderia fazer e decidi criar a página”, conta Henrique que divulga pôsteres traduzidos da campanha, além da versão legendada do vídeo.
Rachel, por sua vez, está envolvida com o Invisible Children desde 2006. Não faz nem nunca fez parte da ONG, mas após assistir o longa-metragem Invisible Children, decidiu agir. Criou a versão brasileira do site da organização em WordPress, tempos depois levou a página para o domínio .com e há uma semana é dona do invisiblechildren.com.br. Tudo pago do bolso dela, voluntariamente.
“A ideia dos vídeos é educar. Partindo disso, eu acho que toda argumentação é válida. A partir do momento que as pessoas criticam, há uma tréplica e nisso há mais informações rolando. Isso não existiria sem a internet. A ajuda das redes sociais foi absolutamente fundamental nesse ponto”, diz ela.
Ativismo de sofá
O ativismo pelas redes sociais é criticado por quem espera que a mesma quantidade de pessoas que confirmou presença no evento de protesto pelo Facebook vá para as ruas bater panela. Essa “crítica” ganhou diversos nomes como slacktivism (ativismo preguiçoso), clicktivism (ativismo de clique) ou, no bom português, “ativismo de sofá”.
O cartunista e ativista Carlos Latuff, que distribui de graça seu trabalho para movimentos sociais do mundo todo pela rede, acredita que isso não é um problema da internet. “Sempre houve os ‘revolucionários de gabinete’. Gente acomodada sempre houve e sempre haverá, com ou sem internet. Militar é questão de atitude”, afirma.
Rachel Azevedo também desaprova quando a militância acaba no virtual. “Quem acha que ‘curtir’ é fazer sua parte está enganado. Mas a partir desse ‘curtir’ você está se educando. Talvez você não se levante hoje, mas isso cria em você o sentimento de que há algo a ser feito. Talvez não trabalhe com crianças na África, mas com as crianças pobres perto da sua casa”, diz.
Henrique, o dono da página no Facebook, acredita no poder do clique. “Há quem critique, dizendo que só compartilhar não ajuda nada. Mas, por outro lado, não compartilhando você está ajudando menos ainda.”
“Acho que é papo furado”, diz Markun. Para ele “não há como colocar essas coisas em uma “escala de valor”.
“O ativista do ‘Like’ é menos eficaz que o que ocupa uma praça? Quem é melhor, o que faz um software, o que optou pela revolução armada ou o revolucionário pacífico? Tudo é uma possibilidade inicial de engajamento que antes estava distante”, afirma. “Os espaços digitais resgatam uma galera que estava completamente à margem dessa história e a faz começar a compartilhar questões em comum. Acho poderosíssimo.”
Ao apoiar incondicionalmente uma causa há sempre o perigo de se endossar não só o que está na superfície, mas apoiar o que está por trás também.
Latuff diz que o viral Kony 2012 nos ensina, principalmente, a não acreditar em tudo o que se vê. “Num mundo dominado pelas imagens, é preciso estar atento à manipulação. É necessário acima de tudo questionar o que se vê em vez de consumir sem pensar, sem refletir. Hoje em dia as intervenções são travestidas de ajuda humanitária.”
O cartunista diz que é também na web que está o antídoto para as falsas causas. “O Kony é um bom exemplo: o que parecia ser um vídeo de um ativista bem intencionado aos olhos menos avisados, aos poucos vai se revelando uma peça de propaganda cuidadosamente produzida”, afirma. “Graças à internet, vieram à tona os interesses por detrás dessa campanha.”
Diversas segundas intenções foram apontadas no projeto Kony 2012. Uma delas vem da sua conexão com grupos religiosos conservadores que apoiam políticas homofóbicas e contra o controle de natalidade em Uganda. Entre essas ligações, a que mais chama a atenção é a doação de US$ 414 mil recebida em 2008 do grupo National Christian Foundation, que promove uma agenda antigay e criacionista. A doação consta da declaração de imposto de renda da fundação cristã e foi mostrada pelo site Talk To Action, que monitora a direita cristã dos EUA.
Um estudo do caminho da viralização do vídeo realizado pela Social Flow, empresa que analisa conteúdo das redes sociais, mostra que ele não estourou da noite para o dia. O fundamental foi sua disseminação inicial pelas redes de base da ONG. O levantamento da Social Flow concluiu que “o movimento teve forte apoio de jovens religiosos, muitos dos quais postam salmos bíblicos nas biografias de seus perfis.”
O trio fundador da ONG (Jason Russell, Bobby Bailey e Laren Poole) sempre se declarou “religioso”. Ao mesmo tempo, faz questão de dizer não querem definir a organização por essa característica.
Mas há quem defenda que a religião é apenas mais uma camada de disfarce de Kony 2012. É o caso do jornalista australiano John Pilger, ganhador de diversos prêmios de jornalismo no Reino Unido e Austrália e autor do livro Hidden Agendas, de 1999.
“Essa história é um exemplo de cruzada política evangélica americana ajudando a acobertar política externa americana predatória”, disse ele ao Link por e-mail. “No caso, a invasão da África – Uganda, em particular – pelo governo Obama. O objetivo é assegurar o petróleo da África e deter o avanço chinês no continente”, afirma.
Leia também
O dilema da imprensa no drama das “crianças invisíveis” em Uganda– Carlos Castilho
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[Camilo Rocha e Murilo Roncolato, do Estado de S.Paulo]