Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Deveres do jornalista

Quando menos se espera, sua sombra reaparece, quase sempre acompanhada da pergunta “O que diria ele disso tudo?” Ele, que me desculpem os sartrianos, é Albert Camus.

Ainda não vi (ou li) nenhum francês repetir a pergunta, a propósito da chacina em Toulouse e Montauban, mas uma hora dessas fatalmente a ouviremos ou leremos. De qualquer modo, antes mesmo de o terrorista franco-argelino Mohammed Merah sair de casa para matar, o pied-noir Camus já estava de volta ao noticiário. À primeira página do caderno “Week-end” de Le Monde, na semana passada. Por causa de outra guerra. Não a guerra da Argélia, que tanto o perturbou e, afinal, o constrangeu a um controverso silêncio na segunda metade da década de 1950, mas a segunda mundial, na qual só pôde combater com sua arma mais eficaz, as palavras.

Isento do serviço militar por seu frágil pulmão, Camus era jornalista em Argel quando a guerra estourou, em setembro de 1939. Editava Le Soir Républicain, folha diária que fundara com Pascal Pia duas semanas depois da invasão da Polônia. Para a edição de 26 de novembro, preparou um artigo-manifesto sobre a liberdade de imprensa e os deveres do jornalista que a censura vetou na íntegra e misteriosamente desapareceu entre os guardados do escritor. E inédito permaneceria se a colaboradora de Le Monde Macha Séry não o tivesse encontrado, junto com outros, nos Arquivos de Ultramar, em Aix-en-Provence.

“Difícil evocar hoje a liberdade de imprensa sem ser tachado de extravagante, comparado a Mata-Hari ou confundido com o sobrinho de Stalin.” Assim Camus abria seu manifesto, que ao todo continha 1.287 palavras e não era assinado. Séry comprovou sua autenticidade – e também a dos demais textos por ela exumados nos arcanos da polícia, ao largo dos quais passaram batido todos os biógrafos e estudiosos do escritor.

A verdade dita de forma irônica

“No entanto”, prosseguia Camus, “essa liberdade é uma das faces da liberdade tout court e sua obstinada defesa, a única maneira de vencermos realmente a guerra.” Recomendava que se evitassem “lamentações inúteis ante um estado de coisas que não pode ser evitado”, pois a questão na França, àquela altura, não era mais saber como preservar a liberdade de imprensa, mas descobrir como, sem ela, um jornalista podia continuar livre, independente. Não era uma questão coletiva, mas individual. E presente nas situações de guerra e em ditaduras. Ou seja, uma questão sempre atual.

Pela prescrição camusiana, o jornalista, para ser livre, precisa manter-se lúcido, desobediente, irônico e obstinado. Ser lúcido é resistir aos estímulos da ira e ao culto da fatalidade, e desse modo evitar a difusão de notícias que possam excitar o ódio ou provocar desespero. Como não pode dizer tudo o que pensa, se omitir o que não pensa ou aquilo em que não crê estará cometendo um ato de desobediência à altura das suas possibilidades – ou praticando uma “liberdade negativa”, de longe a mais importante de todas, segundo Camus, na medida em que abre caminho para o surgimento da verdadeira liberdade. Não servir à mentira é servir à verdade pelo avesso.

A ironia, na visão de Camus, é “uma arma sem precedentes contra os poderosos”, complementar à dissidência, com a vantagem de nos permitir muitas vezes dizer a verdade e não apenas rejeitar o que é falso. Referia-se à ironia socrática (jamais praticada por Hitler, ressalta), em detrimento do tom indignado e dogmático em geral assumido pelos dissidentes, presa fácil para qualquer censor. A mesma verdade dita de forma irônica tem o dobro de chance de passar pela censura. “Isso explica por que jornais como Le Merle e Le Canard Enchaîné conseguem publicar tantos artigos corajosos”, complementa Camus. Isso também explica o sucesso do semanário carioca Pasquim, durante a ditadura militar.

“Informar bem”

Por fim, a obstinação, “virtude cardeal” sem a qual as outras não se sustentariam eficazmente. São muitos os obstáculos impostos pela guerra e as ditaduras, mas os mais esmorecedores não seriam os mais severos, e sim, os outros, mais insidiosos: “A tolice perseverante, a pusilanimidade organizada e a estupidez agressiva”, a serem combatidos obstinadamente.

Os quatro mandamentos do jornalista livre são temas que atravessam toda a obra romanesca de Camus e estruturam sua reflexão filosófica. Há trechos do artigo revelado por Macha Séry que reapareceriam, quase literalmente, em O Homem Revoltado. Durante os quatro meses em que trabalhou sob o tacão de Lorit, o capitão censor, Camus defendeu as causas certas, combateu a miséria alimentada pelo colonialismo francês no Magrebe, o excessivo determinismo social de alguns pensadores (“os acontecimentos políticos e sociais são provocados por humanos, e de seu controle não escapam”) e os “mercadores da morte” da indústria armamentista. Em 10 de janeiro de 1940, Le Soir Républicain foi fechado, deixando Camus desempregado, pronto para trocar o Norte da África pela França, onde em breve iniciaria uma carreira fulgurante, obstinadamente lúcida, livre e dissidente.

Para ele, o jornalismo foi muito mais que uma profissão, uma ocupação circunstancial, foi uma escola de vida, como o futebol e o teatro, suas outras paixões. Das coisas que nela aprendeu e transformou em lição para seus pobres discípulos, destaco uma que em muitas redações ainda não pegou: “Informar bem em vez de informar rápido, precisar o sentido de cada notícia com um comentário apropriado, instaurar um jornalismo crítico e, acima de tudo, não admitir que a política predomine sobre a moral nem esta descambe para o moralismo.”

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[Sérgio Augusto é jornalista]