A Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos (FTC) tentou, por meio do estabelecimento de algumas simples diretrizes, tornar a vida e os dados online dos usuários americanos mais seguros, dando ao internauta maior controle sobre a coleta e uso de informação pessoal. A captura de dados pessoais por sites na web tornou-se uma prática comum, pouco notada ou vista como um problema pelos usuários. A revista PCWorld (26/3) publicou que “à primeira vista, as diretrizes do conselho parecem bastante benignas”:
“Elas declaram que as companhias deveriam criar proteção à privacidade em cada estágio, incluindo coleta e retenção de dados limitados, e procedimentos para proteger exatidão. Também recomendado: consumidores deveriam ter uma opção para não serem rastreados na web (do-not-track option) e as companhias deveriam revelar detalhes sobre quais dados estão a coletar, como estão sendo usados e prover acesso dos usuários aos dados coletados sobre eles.”
Essas simples orientações bastaram para assustar alguns especialistas em privacidade de empresas na web. “As orientações não são benignas, mas imprudentes”, protestou Daniel Castro, analista sênior da Fundação Informação, Tecnologia e Inovação (ITFI). Segundo ele, o novo relatório mostra que a Comissão Federal de Comércio (FTC) “ainda desconhece os fundamentos econômicos da web”. Daniel ainda disse mais:
“Consumidores deveriam ter opções para proteger sua privacidade, mas existem compensações e custos para criar essas proteções. As recomendações da FTC poderiam criar custos econômicos que sufocariam a eficiência e inovação que os consumidores também querem da internet.”
Corrupção de conceitos
Em entrevista à mesma revista, Castro acrescentou que a FTC “é uma agência reguladora. Esta é sua perspectiva. Eles raciocinam em termos de regulação”. Ele crê que a publicidade precisa invadir a privacidade do internauta para melhor atendê-lo em suas necessidades específicas. Qualquer limite a essas práticas representará limites à inovação, o que, por sua vez, implicará barreiras para a propaganda online e “modelos de negócios inovadores”. Isso, por sua vez, trará limites para as opções de escolha do usuário.
A reportagem da PCWorld traz ainda a preciosa colaboração de outro especialista, Larry Ponemon, diretor do Instituto que leva seu nome, especializado em privacidade de empresas na web. O pesquisador acredita que o marketing e a publicidade controlam e financiam a internet. E que se os retiramos dela, nada restará. Para o professor Ponemon, a web nada mais é do que um espaço virtual para negócios. Ele acrescentou também um dado importante e verdadeiro sobre o comportamento dos internautas na web: segundo suas pesquisas, “os consumidores não se importam em revelar seus gostos e desgostos”:
“Nós pesquisamos isso todo ano, e o nível de preocupação que as pessoas têm sobre suas privacidades nunca ultrapassa 10%, e mesmo assim pensamos que esta é uma superestimação. Outros 65% dizem que se preocupam, mas não o suficiente para mudar seus comportamentos em termos de tornar informação sobre eles disponível. Outros 25% dizem que simplesmente não se importam, de um modo ou de outro.”
Ponemom tem uma concepção reduzida e mercantil da internet, mas está certo neste ponto: pouca gente se preocupa, de fato, com sua privacidade na internet. E sua atitude descuidada só ajuda as empresas e sites que rastreiam e acumulam bancos de dados sobre preferências dos internautas na web. A excessiva comercialização da web levou à corrupção dos conceitos de privacidade e liberdade na web, afirmou Manuel Castells (A Galáxia da Internet).
Internauta anônimo não vai muito longe
Dados de usuários são moeda de troca entre as grandes empresas da web. Sites menores regularmente rastreiam a navegação de seus visitantes, em busca de padrões e preferências. “Corretores” de informação negociam dados privados como se fossem mercadoria comum. Todos esses dados são armazenados e usados para lucro em explorações na internet. Diante das vantagens dos novos recursos que chegaram junto com a banda larga, a percepção de uma ameaça potencial à segurança de nossos dados diminuiu. Trocamos tranquilidade por velocidade sem muita reflexão ou cuidado.
Nos Estados Unidos, o Congresso rejeitou a ideia de dar ao internauta o poder de usar o chamado “direito de exclusão”, que impede que seus dados pessoais sejam utilizados sem seu consentimento. A Europa optou por criar organizações estatutárias de proteção de dados e da privacidade dos usuários, em vez de deixar a atividade para um conselho de comércio, como fizeram os americanos. Mas os resultados não foram tão diferentes assim nos dois lados no Atlântico: o usuário ainda paga a conta por algo que lhe é pretensamente oferecido como gratuito. A comercialização direta dos dados privados de usuários, ou sua utilização para monetizar diretamente as empresas, são parte da cena da internet contemporânea.
Quais seriam então as alternativas para o internauta que não quer ter seus dados coletados, vendidos ou sabe-se mais lá o que, na web? O que ele (ela) pode fazer? Desabilitar o Java-script, usar um bloqueador de cookies? Desativar todas as extensões que atraem os programas espiões? Usar programas que o tornam pretensamente anônimo na internet? Experimente, meu caro leitor, usar um deles quando tentar entrar no Facebook ou em algum órgão oficial. O resultado será com certeza decepcionante: ninguém entra em lugar algum na web com programas que ocultam a identidade do navegante na rede. A identificação do internauta é algo imposto a ele e as chamadas “tecnologias de liberdade” o deixam como uma criatura solitária e paralisada num mundo que não o aceita. Não se pode ir muito longe anônimo, na web.
Mudança de hábitos
Descartadas as chamadas “tecnologias de liberdade”, o que sobra? Há duas alternativas que devemos reforçar se quisermos uma internet mais confiável e menos espiã dos hábitos de navegação de seus utentes: a primeira é apoiar o desenvolvimento do software gratuito e de licença livre, pois o software patenteado restringe o alcance da informação e também captura informação sobre os usuários. Uma ecologia de softwares de fonte aberta seria, teoricamente, menos sujeita ao controle do governo e a espionagem descarada das empresas da web nos dados dos internautas.
Pode ser uma boa sugestão, mas, mais uma vez, nada prática. Substituir toda a família de software patenteado por programas de fonte aberta traria uma queda enorme na produtividade geral para empresas e usuários individuais. O que fazer? Nossos dados serão usados para sempre como moeda de troca entre empresas? Faremos publicidade gratuita eternamente para as maiores marcas mundiais só para ter acesso ao Facebook ou outra rede ou o que quer que esteja sabotando nossas privacidades e nossas liberdades na internet?
Uma boa chance na luta pela recuperação de nossas privacidades na rede poderá vir do apoio a organizações e movimentos sociais em defesa das liberdades de expressão, aos ativistas cibernéticos, a organizações como o WikiLeaks, a Epic e todos aqueles dispostos a desafiar o poder da autoridade e o atrevimento ilegal e sujo do mercado, que espiona nossos hábitos de navegação, vende e troca informações privadas sobre nós.
Mas a verdadeira mudança só virá se estivermos dispostos a abrir mão da autocomplacência e do conforto ilusório e inconsequente do nosso comportamento na rede. Precisamos mudar nossos hábitos de navegação na web. Necessitamos nos dar conta do perigo potencial de entregarmos incondicionalmente tantos dados sobre nós. Enquanto prosseguirmos em nossa ingenuidade sobre o assunto, nada vai mudar. Se renunciarmos à luta pelos nossos diretos de privacidade, se abrirmos mão de nossos dados em troca do acesso a redes sociais e outros sites, estes, então, serão os donos de fato de toda a informação colhida sobre nós.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]