Encontrei em casa um pedaço de papel amarelado, com caligrafia infantil, que dizia, em inglês:
“Ela está numa reunião”.
“Ela está em reuniões fora do escritório, volta amanhã.”
“Ela não pode atender no momento, por favor deixe seu número de contato.”
Reconheci a caligrafia da minha filha e me lembrei que, no milênio passado, ela se esbaldou no escritório, brincando de recepcionista. A “chefe” temporária havia lhe dado uma lista de instruções para evitar atender clientes. A idade do pedaço de papel já era traída por seu conteúdo analógico. Quem pode, hoje em dia, adiar um problema sob a desculpa de que está fora do escritório?
Acabo de receber mensagem de uma conhecida autora e jornalista, pedindo desculpas por não ter respondido a um pedido de entrevista por email. Durante três semanas. “Estava em Londres”, ela se explicou, talvez arrependida por não ter gravado um segmento de TV sobre seu livro.
Não contestei a desculpa, mas lembrei que, quando estava numa área deserta da costa do Estado do Maine, onde as torres de celular são escassas, ainda assim mandei email para provocar o Sérgio Augusto, que não suporta a água fria, toda gabola. Tinha mergulhado no mar com temperatura de 14° C. Ele reagiu com horror munchiano. Lembro que uma versão da tela O Grito, de Edvard Munch, está chegando ao MoMA de Nova York, esta semana.
Quantas vezes você já teve um diálogo semelhante a este:
– Fulana não retornou minha chamada, deve estar viajando.
– Mas ela postou uma foto no Facebook, jantando no restaurante aqui perto.
Intimidade na vitrine
Quando Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook, disse que os jovens contemporâneos esperam menos privacidade, reagi à sua declaração como uma indignação orwelliana. Mas ele constatou o mundo que ajudou a criar.
Meu estimado coconspirador de Caderno 2, Lee Siegel, andou preocupado comigo. Ele disse que eu estava tuitando com uma produtividade tolstoiana, digna do autor de Guerra e Paz. Expliquei que não tinha perdido o juízo – ainda – e que a enxurrada de tweets que ele notou se devia ao nosso blogging ao vivo em noite de debates eleitorais, como a desta segunda-feira, no Radar Global do Estado. Além disso, não tuíto sobre a salada de atum que estou comendo e sim sobre o que considero digno da atenção coletiva.
O fato é que estamos nos transformando em recrutas voluntários num ecossistema huxleyano. No nosso admirável mundo novo, se você tiver contas no Facebook, Twitter Tumbler e outras mídias sociais, pode praticar voyeurismo como um esporte extremo, com amigos e estranhos.
Confesso: outro dia, estava atrasando a entrega de uma reportagem e senti uma tentação irresistível de tuitar um link muito engraçado. Desisti. Se ela tem tempo de tuitar, dirá a produtora, por que não se concentra no prazo vencido? Percebi que havia voltado à adolescência, quando tentava burlar a vigilância paterna.
Vadiar, procrastinar é uma parte integral da criatividade. Você já teve uma idéia no chuveiro ou no trânsito, mais produtiva do que horas de sofrimento diante da tela em branco?
Mas o acesso constante ao que fazemos, onde estamos, o que nos preocupa é uma perda real de privacidade. Como disse o especialista em Direito Constitucional, Jeffrey Rosen, ao Aliás, a privacidade impede que sejamos julgados fora de contexto. A fronteira entre o público e o privado, que os arautos da mídia social desprezam, é uma ameaça real à intimidade, o território onde nos permitimos errar. Se a sua intimidade se desenrola numa vitrine, uma vítima certa é a introspecção. E, sem introspecção, como se forma o caráter?
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[Lúcia Guimarães, do Estado de S.Paulo em Nova York]