Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um mundo de “aspies”

Adam Lanza, o assassino suicida responsável pela tragédia de Newtown, na sexta-feira (14/12), era Asperger. Ao menos foi isto que seu irmão Ryan informou às autoridades policiais, diz o New York Times. A notícia há de ter causado incômodo a um bocado de gente que, como eu, tem contato pessoal com a síndrome. Em 2001, Asperger foi apelidada pela revista Wired de a “síndrome geek”. O Vale do Silício, aliás, tem uma das maiores concentrações de aspies do mundo.

Aspies, pois é, é assim que a turma se trata. E nós, os outros, somos humoradamente apelidados de neurotípicos. Na edição 4 do Manual de Diagnóstico das Desordens Mentais (DSM-4), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria há 20 anos, a síndrome aparece isolada. No DSM-5, que sairá agora em 2013, o diagnóstico é eliminado e integrado às desordens do espectro de autismo. Passa a ser visto, oficialmente, como um autismo muito leve.

Jamais soube de um aspie que não fosse particularmente inteligente. E a lista dos possíveis aspies é longa: Al Gore, o ex-quase presidente americano; Bill Gates; Isaac Asimov, o escritor de ficção científica; Alfred Hitchcock; Albert Einstein. É impossível olhar para Mark Zuckerberg, criador do Facebook, e não ver Asperger escrito em sua testa. O leitor mais atento, perante a lista, já logo vai formando uma ideia mental. São pessoas às vezes descritas como excêntricas, em comum têm um certo sem jeito perante a vida. Têm um modo de pensar extremamente lógico.

Raciocínio impecável

Entre 1993 e 1999, o número de crianças e adolescentes diagnosticados com Asperger ou formas mais avançadas de autismo, no Vale do Silício, mais do que dobrou. E o crescimento continuou. O motivo, provavelmente, é porque a região atrai um determinado tipo de pessoas e, não raro, Asperger vem junto. Nem todo bom programador tem a síndrome. Mas a mente de quem tem a síndrome funciona como a dos melhores programadores. Tudo é um algoritmo: se isso, então aquilo. Uma lógica estrita sem muito espaço para matizes e nuances.

São três as dificuldades que acompanham os aspies. Comunicação em sociedade. Não conseguem interpretar as sutis mensagens transmitidas por gestos, olhares, tons de voz. Interação com outras pessoas: as regras das relações humanas, o momento de iniciar uma conversa e o de terminar. Às vezes, ficam perto demais das outras pessoas, ou então parecem demasiado distantes. Se atrapalham com metáforas. Seu natural é compreender tudo literalmente. Por fim, imaginação social. A capacidade de imaginar o que os outros estão pensando ou sentindo. Por outro lado, têm mentes enciclopédicas. Todo aspie tem uma meia dúzia de assuntos nos quais se especializa com profundidade. Astrofísica ou Senhor dos anéis, não importa. Não há detalhe que desconheçam. E não é uma vida fácil. Têm perfeita consciência de que há uma penca de informações emocionais no ar que eles não compreendem. Toda interação social pode gerar uma imensa ansiedade, principalmente para os mais jovens.

Sempre que vejo Zuckerberg sinceramente espantado com a reação dos usuários do Facebook por conta de alguma mudança que afetou sua privacidade, por um lado o entendo. Ele está fazendo o que é lógico. As sutilezas do impacto social de tanta informação antes privada tornada pública lhe escapam. Quando Al Gore foi candidato à presidência dos EUA e a turma do marketing recomendou que mostrasse à nação sua condição de macho-alfa, ele o fez plantando um dos beijos mais desajeitados já dados por um político na própria mulher. Não é que não tenha afeto, sua expressão é que é difícil. Quando, na sequência, saiu mundo afora recitando os muitos detalhes do drama das mudanças climáticas, lá estava um aspie. Como lá está um aspie em Bill Gates, sempre desajeitado e com o raciocínio lógico impecável.

Nem todo aspie é gênio. Todo aspie fica ansioso perante a interação conosco. Eles se surpreendem com nossas reações. Como acontece com todos os humanos, alguns aspies são assassinos. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. A essa turma, diga-se, devemos muito dos grandes avanços do mundo.

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[Pedro Doria, de O Globo]