A internet na versão que conhecemos, que usa o conjunto de protocolos TCP/IP, completa 30 anos em 1º de janeiro de 2013. O Departamento de Defesa dos EUA (DoD) havia estabelecido janeiro de 1983 como data-limite da migração da Arpanet para o TCP/IP. E exatamente do nome desse protocolo, Transmission Control Protocol/Internet Protocol, é que derivou o nome da rede toda: internet.
A Arpanet desenvolveu-se com recursos do DoD, o que nos levaria a pensar em inspiração puramente militar. O que se esquece é que os envolvidos em sua criação, pesquisadores provenientes da melhores universidades na área de tecnologia (MIT, UCLA, SRI, UCSB, Utah), compartilhavam ideias libertárias dos anos 70, como livre cooperação, compartilhamento e autonomia. E elas se somavam a requisitos de solidez para o projeto Arpanet, como não haver pontos únicos de falha: “Nada que tenha um ‘centro de controle’ é suficientemente resistente em caso de problema técnico ou de ataque”. Chegou-se a uma concepção de rede distribuída, sem controle central, em que a adesão era espontânea e voluntária.
Assim nasceu a internet. Sem uma “chave de desligamento” central, sem um ponto vulnerável específico e sem um “centro de controle”, integrada pelas redes autônomas que aceitassem seguir seu padrão tecnológico, mas sem terem de abdicar de sua administração própria e específica.
Aliás, a forma de gerar esses padrões é outra característica marcante e disruptiva em relação ao ambiente de telecomunicações da época. Se a União Internacional das Telecomunicações definia padrões de telefonia em reuniões controladas e fechadas, a internet congregava três vezes ao ano uma comunidade aberta, disforme, sem filiação definida, interessada em discutir padrões. A difícil busca do consenso dentro da comunidade da Internet Engeneering Task Force (IETF) é que permitiria a uma proposta específica subir de nível até chegar, eventualmente, a ser ungida como padrão proposto. Os documentos que o IETF gera, significativamente, se denominam RFC, de Request for Comments, ou “pedidos para comentários”…
Aceitação plena
Outro aspecto tecnológico foi igualmente disruptivo: a rede seria baseada em “comutação de pacotes”, não mais em “comutação de circuitos”. Na prática isso marcava um afastamento essencial da telefonia, na qual para uma conexão se estabelecer é necessária a definição a priori de um “caminho” entre originador e destinatário: o circuito. Na internet qualquer mensagem é quebrada em pacotes que são jogados na rede e seguem pelos diversos caminhos possíveis e dinâmicos até serem reagrupados no destino final. Isso, além de aprimorar a solidez da rede, quebrava a maneira de cobrança da antiga telefonia, definida pela duração e pelo comprimento do circuito alocado à conexão.
Dez anos após o estabelecimento da internet, outra revolução surgia: a Word Wide Web (WWW), que estimulou a participação direta e ativa de todos os internautas no uso e criação de conteúdos, o que tornou acessível publicar na rede. Os repositórios de informação e de conhecimento coletivos, as redes sociais e toda a riqueza que vemos hoje, somados a uma barreira de entrada muito baixa, permitem a qualquer um, munido de uma boa ideia e de conhecimentos suficientes, propor um novo serviço na rede.
Esse rompimento com o mundo tradicional das telecomunicações foi perfeitamente percebido no Brasil. Conectamo-nos à internet em 1991 e já em 1995 foi criado o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), não para regular ou controlar a rede, mas para disseminar seus conceitos e características, recomendar boas práticas e levantar dados sobre sua evolução e penetração no País. À época discutia-se a privatização das telecomunicações e a Anatel, recém-criada como reguladora, já distinguia claramente Serviços de Valor Adicionado (SVA) de Serviços de Telecomunicações propriamente ditos. Os SVAs estavam fora de sua esfera de regulação. O mesmo estabeleceu a Lei Geral das Telecomunicações, em 1997.
A internet no Brasil nascia aberta, livre, não regulada, sem barreiras de entrada e com uma perspectiva, então ainda não suficientemente avaliada, de se tornar numa verdadeira revolução, cuja extensão nem sequer conseguimos avaliar adequadamente 30 anos após seu estabelecimento mundial. Provedores de acesso surgiram no País do dia para a noite, conteúdo em português foi rapidamente gerado e em profusão, os brasileiros aceitaram a rede instantaneamente e em poucos anos passamos a estar entre os que mais tempo dedicavam a ela.
Marco Civil
Na infraestrutura, rede de cobre e coaxiais cederam o passo a redes ópticas, que trouxeram bandas imensas de transmissão a baixo custo. Se em 1991 o Brasil inteiro se conectava à internet por uma única linha de 64 quilobits por segundo (Kb/s), hoje esse valor seria inaceitável até para a conexão caseira de um único indivíduo à rede. A disseminação de fibra óptica em várias capitais permite modalidades de assinatura de acesso à rede com velocidades acima de 100 Mb/s por assinante, mais de mil vezes a conexão do Brasil inteiro em 1991!
Mas nem tudo são boas notícias e a rede tem sido ameaçada. O Comitê Gestor da Internet criou em 2009 um decálogo de princípios que visam a preservar os conceitos que fizeram a internet ser a ferramenta valiosa que é hoje. Um ambiente legal que protegesse a internet e os internautas era necessário: surgiu a proposta de um Marco Civil, com o qual se consolidam os princípios que nortearam sua criação e se busca proteção de direitos como livre expressão e defesa da privacidade.
O Brasil, que granjeou admiração mundial pelo decálogo do CGI e por sua gestão da internet, entretanto, demora a aprovar o Marco Civil. Há nuvens no horizonte que podem indicar procelas. Esperemos que o Espírito da Rede sobrenade…
***
[Demi Getschko é engenheiro e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil]