Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Neutralidade da rede: o que interessa hoje

No dia 8 de novembro de 2012, em um fórum aberto sobre neutralidade da rede no Fórum de Governança da Internet (IGF) em Baku, Azerbaijão, tive a oportunidade de ouvir Luigi Giambardella. Ele é presidente do conselho executivo da ETNO – a associação europeia de operadoras de telecomunicações. Giambardella defendeu os argumentos da associação em defesa de mais lucros para as operadoras através de medidas regulatórias. Foi quase explícito em dizer, como já disse no Brasil o presidente da Oi/Portugal Telecom, que as operadoras têm inveja da maneira em que provedores de conteúdo e de aplicações fazem dinheiro – e ainda mais, utilizando conexões à Internet através de contratos com essas operadoras.

Lembremos que o presidente da Oi/Portugal Telecom (também membro da ETNO) revelou seu desejo de que a manipulação do tráfego que já praticam seja de algum modo legalizada. Foi infelizmente acompanhado pelo nosso ministro das Comunicações, que insiste em que a neutralidade da rede é um mito “romântico” que deveria ser abandonado.

Em comum, as transnacionais da telecomunicação que operam no Brasil (quase todas europeias e, portanto, membros da ETNO) lamentam os métodos inovadores de fazer negócios por parte dos provedores de aplicações e conteúdo, combinados com tecnologias como telefonia via Internet (“voz sobre IP”) e querem agarrar um naco dessa torta de lucros com a ajuda dos governos, dos agentes reguladores locais e da própria UIT (União Internacional das Telecomunicações). Giambardella tentou convencer-nos que “todos ganharão” se houver um acordo internacional que autorize as operadoras a praticar o critério de “quem envia paga” (“sender pays”). Segundo a ETNO, isso hoje não ocorre – uma bobagem tão grande que levou um dos painelistas, o Dr. Milton Mueller, da Universidade de Syracuse, a recomendar que o presidente da ETNO não repetisse essa besteira para não desmoralizar a organização.

Legalização da extorsão

Como funciona a hoje o negócio de venda de conexão? Um provedor de aplicações ou conteúdo (digamos, Facebook, Twitter, Google, UOL) contrata uma ou mais operadoras para fornecer capacidade de trânsito de dados com a Internet – é a chamada “compra de capacidade de trânsito”. Os contratos especificam uma velocidade de trânsito de, digamos, alguns gigabits ou mesmo terabits por segundo. Esses contratos são pagos regiamente pelos provedores, e obviamente incluem o tráfego sainte (o que o Google, por exemplo, envia de seus servidores aos usuários) e entrante (o que os usuários enviam aos servidores do Google, por exemplo, emails para o Gmail e vídeos para o Youtube).

Provedores de acesso ou de conteúdo menores, que utilizam menos capacidade, sofrem em geral com propostas leoninas e arbitrárias por parte das operadoras nessa compra de capacidade, e acabam “subcomprando” banda de cima e “sobrevendendo” essa banda a seus usuários. Hoje esta pirâmide afeta sobretudo os pequenos provedores de acesso locais, ou mesmo os projetos de redes comunitárias ou municipais. Como as operadoras cobram preços arbitrariamente absurdos por essa conexão, os provedores locais de acesso têm que limitar a qualidade de seu serviço para tentar sobreviver, e arriscam vender mais conexões do que permitiria a banda contratada com a Internet.

Do lado do usuário, já sabemos a história da qual somos todos vítimas: os contratos de “banda larga” na ponta são extorsivos, não garantem a velocidade contratada, e ainda estamos sujeitos à bisbilhotagem de nosso tráfego por parte das operadoras. Conclusão óbvia: tanto os provedores de conteúdo e aplicações como os usuários na ponta já pagam às operadoras pelo tráfego Internet. E ninguém, nem o poderoso Google, pode fazer o milagre de usar mais banda do que a contratada com uma operadora.

Na verdade a venda de capacidade é um negócio muito lucrativo para as operadoras, em um mercado não regulado. Tudo que elas têm a fazer é manter os enlaces ativos e ir ampliando a capacidade de suas espinhas dorsais conforme as previsões de demanda. Mas para as operadoras um produto chamado “capacidade de trânsito” é o único conhecido em qualquer mercado que não é para ser usado conforme vendido– um provedor compra capacidade mas não pode usá-la completamente. Se usá-la, terá que pagar um adicional. Quanto a mais? A ETNO quer que isso seja deixado a critério das próprias operadoras e quer que essa prática arbitrária seja autorizada pelos governos. Claro, pensam os nutridos empresários da ETNO, se posso extrair mais dinheiro de uma mesma infraestrutura, por que investir para ampliá-la?

Hoje a gama de serviços Internet pode ser dividida em dois tipos básicos: os que requerem que uma sequência contínua de datagramas (um “stream”) seja entregue a seu destino em tempo real ou sem interrupções (“streaming” de áudio e vídeo, serviços interativos como voz sobre IP); e os que não requerem entrega em tempo real ou em “streams” (email, páginas Web, “chats”, “tweets” etc). Todos esses serviços correspondem a protocolos Internet perfeitamente definidos e o tratamento dos mesmos já está preconfigurado nos roteadores e chaveadores modernos da Internet. Por exemplo, ninguém precisa fazer nada para que uma rede corretamente configurada reconheça um “stream” voIP e trate-o de acordo, a menos que um dispositivo cause uma interferência deliberada para degradá-lo ou mesmo bloqueá-lo.

Mas as operadoras querem interferir e cobrar do usuário final a eliminação da interferência – já ouviram falar de chantagem? Elas não gostam desse nome, preferem chamar de “venda de qualidade de serviço” (a chamada “QoS”, do inglês “quality of service”). Em outras palavras, a ideia é degradar o tráfego de sua conexão e extrair mais dinheiro de você (o provedor de aplicações ou conteúdo, o pequeno provedor de acesso, e sobretudo o usuário final) para retirar a interferência.

O ponto é que elas já estão fazendo isso – a ETNO simplesmente quer legalizar essa extorsão através de acordos sacramentados no âmbito da UIT. Isso significa jogar pela janela a neutralidade da rede na camada de enlace da Internet.

Violações graves

O que é essa “camada de enlace”? A Internet é constituída de várias camadas de serviços, desde o enlace (a conexão que permite que uma máquina chegue à rede através de algum provedor de conexão), a camada de rede, passando pela camada de transporte até a camada de aplicações e conteúdo [para quem quiser ir fundo, ver http://pt.wikipedia.org/wiki/TCP/IP] Nenhuma dessas camadas deveria estar nas regulações da UIT. As propostas da ETNO concentram-se na camada de enlace – é o serviço que nos entregam nos contratos de “banda larga”, e nos contratos de capacidade com os provedores.

Não cabe à operadora interferir no que passa por esses “tubos” contratados. Se a capacidade contratada é plenamente usada, isso é responsabilidade de quem contrata e a obrigação da operadora é simplesmente honrar o contrato. Ao contrário do que tenta impor a ETNO, o provedor de aplicações ou conteúdo que envia dados já pagou por isso à operadora, em contrato por capacidade ou, no caso da ponta, em contratos de “banda larga” pagos pelo usuário final.

Por que esta é a única forma adequada de contratar interconexão entre os diversos serviços Internet? Porque as sessões simultâneas de conexão para troca de datagramas podem passar em qualquer momento dado por vários circuitos distintos de diferentes operadoras, seguindo por vários outros circuitos de distintos fornecedores de conexão – a “nuvem” da Internet não funciona na base da conexão ponto a ponto, ao contrário da telefonia fixa. Se nesses diversos circuitos a fornecedora respectiva aplica um critério distinto de cobrança de tráfego, como contabilizar tudo isso e que resultado terá na conta do usuário final?

Quando era executivo da agora falida empresa de telecomunicações MCI, Vint Cerf lembrava que a decisão de cobrar por tempo as chamadas telefônicas interurbanas talvez tivesse sido um erro porque envolvia uma enorme operação na contabilização e emissão de boletos. E este era um caso simples de conexões dedicadas ponto a ponto para transmissão de voz ou fax.

Ademais, para impor o que podemos chamar de “pedágio arbitrário de bits” as operadoras têm que assumir o controle do tráfego da camada de enlace da Internet, inclusive do roteamento dos mesmos pelos diversos circuitos – violando com isso a neutralidade da rede na camada de enlace. É o que propõem as operadoras (representadas pela ETNO) na conferência mundial de telecomunicações internacionais – CMTI-12 (WCIT-12) – ao aproveitar o processo de reformulação dos Regulamentos Internacionais de Telecomunicação (os ITRs, atualizados este ano pela UIT), objeto central dessa conferência, para inserir a camada de enlace da Internet como parte dos serviços de telecomunicações. [O documento oficial está aqui: http://www.rets.org.br/sites/default/files/final-acts-wcit-12.pdf]

E para isso as operadoras são contra qualquer proposta de legislação ou política que assegurem a neutralidade da rede na camada de enlace, tal como proposta originalmente no Marco Civil. Esta neutralidade, se efetivada por garantias regulatórias, impede que fornecedoras de serviços de enlace de dados interfiram de qualquer modo no conteúdo do tráfego. Mas elas querem toda liberdade para arbitrariamente priorizar tráfego e monetizar o próprio conteúdo do mesmo. Em outras palavras, liberdade absoluta para assumir o controle do transporte e roteamento dos dados e para precificar esse transporte também de modo arbitrário – em resumo, para pedagiar os bits arbitrariamente.

Um cenário novo de controle sobre a camada de enlace veio à tona este ano, durante a WTSA-12 (World Telecommunications Standardization Assembly), evento que define a logística de padronização de telecomunicações da UIT e realizado em paralelo com a CMTI-12. As operadoras conseguiram que a divisão de padrões da UIT (conhecida como ITU-T) aprovasse um padrão extremamente detalhado de bisbilhotagem para a camada de enlace da Internet. Conhecido como “Deep Packet Inspection” (DPI, ou “inspeção profunda de datagramas”), este procedimento já é adotado rotineiramente pelas operadoras para controle, censura e eventual monetização do perfil de navegação dos usuários. Lembremos do caso AT&T denunciado pela Electronic Frontier Foundation (EFF) em 2006, de espionagem maciça de dados dos usuários a serviço da NSA. Nesse mesmo período surgiam denúncias de bloqueio do tráfego do Skype na rede da Brasil Telecom. Coincidentemente, a BR Telecom utilizava o mesmo software que a AT&T usava para a bisbilhotagem de datagramas.

Em julho de 2012 o cientista-chefe da APNIC, Geoff Huston, denunciou a Telstra (principal operadora de telecomunicações da Austrália) exatamente por isso: praticar DPI sobre o tráfego de dados de seus usuários, catalogar os perfis de navegação e repassar esse cadastro a uma empresa canadense especializada em mineração de dados e monetização de perfis, a Netsweeper [ver http://www.potaroo.net/ispcol/2012-07/allyourpackets.htmle http://bit.ly/LQtYR4]. Essa escandalosa violação de privacidade (que pode até colocar em risco a segurança pessoal de milhares de usuários) foi reconhecida pela Telstra, que afirma não ter feito nada ilegal – o que indica que continuará a violar a privacidade de seus usuários e adotar outras formas arbitrárias de controle sobre os dados trafegados por sua rede.

Essa violação escancarada de direitos agora foi sacramentada pela ITU-T, com o padrão de DPI conhecido como Y.2770 [a versão de julho de 2012 está aqui: http://www.rets.org.br/sites/default/files/2012-ITU-DPI-T09-WTSA.pdfA versão final só está disponível para assinantes e membros em http://www.itu.int/rec/T-REC-Y.2770-201211-P/en]. Foi elaborado e aprovado em segredo, sob a coordenação de um representante da China. A última versão do documento (a versão final ainda não foi publicada pela UIT e só está disponível para seus membros) mostra em detalhe como manipular dados de todos os sistemas “peer-to-peer”, qualquer tipo de cópia de arquivo (FTP, por exemplo), como manipular tráfego contínuo (“stream”) de áudio ou vídeo (voIP incluido obviamente), enfim, uma “receita de bolo” para padronizar a violação de direitos e facilitar o trabalho de bisbilhotagem das operadoras e das desenvolvedoras de software de controle. Tenho dito que seria como o Ministério da Justiça definir padrões detalhados para a forma de esfaquear uma pessoa, mesmo que isso seja um crime.

O padrão Y.2770 interessa não somente às operadoras, como também às agências reguladoras que controlam ou querem controlar a camada de enlace. É nesta camada que ocorrem rotineiramente as mais graves violações à neutralidade da rede, e o padrão pretende “colocar ordem na casa” para que essas violações sigam determinados métodos comuns a todas. Não é por acaso que o governo chinês estava presente como coordenador na elaboração do padrão. Não é por acaso que os serviços da Netsweeper são vendidos a países como Yemen, Qatar e os Emirados Árabes Unidos.

Em benefício de todos

Neste cenário sombrio para a liberdade e a proteção de direitos dos usuários na Internet, o que fará a Anatel? O conselheiro Marcelo Bechara propôs que a Anatel assuma unilateralmente a supervisão do controle da camada de enlace (a suposta “regulação da neutralidade da rede”), mesmo antes da aprovação do Marco Civil – como é sabido, a neutralidade na camada de enlace é o ponto de divergência fundamental entre as operadoras (defendidas pelo Ministério das Comunicações) e os proponentes da versão submetida ao Congresso em meados deste ano.

O novo tratado dos ITRs determina repetidamente em seus artigos que todos os procedimentos devem obedecer rigorosamente os padrões definidos pela ITU-T. Isso ajuda muito a entender por que a Europa, em que vários países já aprovaram ou estão em processo de aprovação da neutralidade da rede como lei, não assinou o tratado. E tampouco o Chile, que foi o primeiro país do planeta a estabelecer a garantia de neutralidade da rede em lei.

Como o Brasil assinou o tratado, isso significa sacramentar a aplicação do padrão Y.2770 no Brasil, dando às transnacionais de telecomunicações que operam no país a liberdade absoluta, sacramentada por padrão internacional (!) para arbitrariamente interferir nos nossos conteúdos e nossos perfis de navegação? Ou que a Anatel vai ignorar o padrão da UIT e criar o seu próprio? Ou simplesmente garantir o direito à privacidade e a neutralidade na camada de enlace, como desejamos todos e todas que participamos da exaustiva elaboração pluralista do Marco Civil?

Consultado recentemente, um representante do MiniCom declarou desconhecer a existência do padrão. É preocupante, já que os padrões da ITU-T são parte integrante dos requerimentos dos ITRs. E ainda mais em um caso que representa uma quebra radical com os valores fundamentais da Internet em função de interesses promovidos pelo grupo de operadoras transnacionais que controlam o mercado brasileiro de telecomunicações. A Anatel não apresentou até agora nenhum comentário sobre sua eventual participação na elaboração desse padrão.

Finalmente é óbvio que esses movimentos de controle e violação de direitos impactam na economia da Internet, com a resultante transferência de custos adicionais aos usuários finais. Impacta também na Internet que conhecemos porque os ITRs impactam diretamente na neutralidade dos enlaces da Internet. Os mesmos que garantem que no Brasil tenhamos os preços mais altos do mundo em telefonia celular poderão definir o que cobrar e como cobrar para entregar um “pacote de dados” de uma “nuvem” a outra. Com o padrão Y.2770, estes mesmos empresários terão liberdade ainda maior (e sacramentada em regulamento) para violar os direitos básicos dos usuários.

Volto a repetir, como disse em minha fala na cerimônia de abertura em Baku: deixem a Internet florescer livremente em benefício de todos que vivem em suas extremidades, que são todas e todos nós.

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[Carlos Alberto Afonso é engenheiro, doutor em Pensamento Social e Político e diretor de planejamento e estratégias da Rede de Informações para o Terceiro Setor (RITS)]