Você assistiu oito vezes nos últimos meses ao filme “Ghost”, mas não quer que ninguém saiba? Na semana passada, o serviço de filmes on-line Netflix obteve do governo dos EUA o direito de divulgar esse prazer solitário aos seus amigos no Facebook.
Na decisão, o presidente Barack Obama deu aval para que empresas como Netflix, Hulu e Amazon Video compartilhem os hábitos dos usuários no Facebook automaticamente, sem permissão prévia e para efeitos promocionais, como já acontece com músicas e até artigos jornalísticos. Quem for contra terá de desabilitar manualmente tal compartilhamento.
A medida é mais uma que permite o uso de dados pessoais para publicidade.
O Censo da Privacidade On-line, realizado a partir de 2012 pela Universidade da Califórnia-Berkeley, revelou que os cem sites mais populares dos EUA usavam cookies -arquivos que gravam dados pessoais dos internautas, como o seu histórico de navegação, que podem ser usados para fins comerciais. A segunda pesquisa, divulgada em novembro, encontrou 6.485 cookies, contra 5.795 cookies na pesquisa de maio.
Dados como esses motivam reações de usuários, que querem limites para o compartilhamento de dados. Sinal disso é o aumento da procura de programas que evitam o rastreamento. O Ghostery, que avisa o usuário qual software um site usa para gravar seus movimentos, já tem 40 milhões de usuários. O bloqueador DoNotTrackMe (não me rastreie), lançado há menos de um ano, foi baixado 3 milhões de vezes.
Dois grupos independentes, PrivacyChoice.org e Diasporaproject.org, permitem aos usuários ter ferramentas para controlar os seus dados, na mesma linha do DoNotTrackMe e do Ghostery.
O fenômeno também motiva debates legais.
Nos EUA, em dezembro, a Comissão Federal de Comércio aprovou uma atualização do Código de Proteção à Privacidade Digital da Criança, para que menores de 13 anos não possam receber, nos sites que visitam, propaganda personalizada, elaborada a partir da navegação recente pela internet ou pela sua localização -gigantes como Disney e Nickelodeon já foram acusados da prática.
Em maio passado, entrou em vigor no Reino Unido uma lei que determina que, na visita a um site, todo internauta seja avisado que aquele endereço usa cookies. Cabe ao usuário aceitar ou não.
O Brasil não tem lei uma sobre o assunto, mas há um projeto em estudo no Ministério da Justiça.
Por conta própria
No Vale do Silício, as empresas de tecnologia defendem a autorregulamentação. A Digital Advertising Alliance, que representa 400 empresas da internet, prometeu em 2012 começar a criar botões em seus sites nos quais o internauta possa clicar para não ser seguido, mecanismo que a Comissão Federal de Comércio pede desde 2010.
E criou uma ferramenta para isso no site da entidade: aboutads.info/choices.
Mas boa parte dos gigantes da internet ainda não implementou o sistema, obrigando o internauta a desabilitar propaganda por propaganda. Enquanto isso, o Gmail sabe a quem você costuma mandar e-mails, e a Amazon cria listas de ofertas baseadas em suas compras passadas.
Quase todos os grandes varejistas americanos já usam esse sistema. Um pequeno escândalo foi causado quando um pai descobriu que sua filha adolescente estava grávida a partir de publicidade de produtos de gestantes que a rede de hipermercados Target mandava para a garota.
“A publicidade digital americana está mudando rapidamente, porque sabíamos que pop-ups acabavam irritando o usuário”, diz Peter Minium, diretor do IAB (Interactive Advertising Bureau), a associação das agências de publicidade digital dos EUA.
“Hoje, há cada vez mais conteúdo, mais investimento e mais entretenimento nas campanhas. Como na TV ou na revista, a publicidade é parte do conteúdo da rede.”
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ENTREVISTA / JOSEPH TUROW
Internautas não querem ser seguidos pela publicidade
Cada vez mais incomodados com uma publicidade digital que invade a privacidade, os consumidores não têm quem os defenda, diz Joseph Turow, uma das mais fortes vozes sobre internet nos EUA.
Professor de comunicação da Universidade da Pensilvânia, o acadêmico é autor de pesquisas sobre o assunto e lançou em 2012 “The Daily You” [o você diário], com o sugestivo subtítulo “como a nova indústria da publicidade está definindo sua identidade e seu valor”.
Para Turow, os internautas nunca estiveram tão vulneráveis -e não apenas pela privacidade escancarada das redes sociais. A seguir, trechos de sua conversa com a Folha, por telefone, da Filadélfia. (Raul Juste Lores)
Regras de conduta
Jornais e revistas historicamente criaram muros entre a Igreja e o Estado, o conteúdo jornalístico e a publicidade, com regras muito claras para diferenciar a propaganda. No mundo on-line, essas regras estão desmoronando. Tanto no Huffington Post como no Gawker [sites jornalísticos e agregadores de blogs], há anúncios com a mesma cara de reportagens.
Mimetizar conteúdo
A maior e mais proeminente mudança é dos anúncios que se querem fazer passar por conteúdo editorial. O Facebook tem links que mimetizam os posts de seus amigos, o Twitter tem tuítes que são anúncios, tudo desenhado para parecer um “artigo” verdadeiro, não propaganda. Querem que o internauta não perceba que é publicidade, porque já admitem que a publicidade se tornou um fator de irritação na internet.
Competição feroz
A competição por anúncios é muito mais feroz, então se faz de tudo para agradar o anunciante ou a agência. No mundo off-line é difícil, mas na internet, em que o valor por leitor é muito menor, as regras desaparecem.
Qualidade jornalística
A publicidade sempre quis se associar ao conteúdo de alguma forma. Um certo tipo de elite lê os jornais de maior qualidade, e era isso que a publicidade queria, ser ligada a essa qualidade jornalística. Hoje em dia, o público se pulverizou e pode estar em qualquer lugar, no site de fofocas. Então o anunciante quer estar em todo lugar, contanto que não seja de pornografia.
Menos de 1%
O Twitter é um dos mais bem-sucedidos nessa operação, pela própria natureza do veículo, de pílulas de 140 caracteres. Menos de 1% dos anúncios no Facebook, no Google e no Bing são clicados pelos internautas. É normal, são bem mais eficientes que mala direta, que ninguém abre. Se os anúncios em revistas e jornais tivessem que ser clicados, não seriam muito mais acessados. Nas revistas, o anúncio precisa ser olhado de qualquer maneira, entre as reportagens.
Cegueira ao anúncio
Acontece cada vez mais a “banner blindness” (cegueira ao anúncio). As pessoas ignoram automaticamente o anúncio. O Google não faz dinheiro com cliques, mas ao oferecer as bilhões de vezes que os usuários o acessam diariamente. É audiência.
A publicidade que tem funcionado mais é a que oferece algo novo. Um game, um vídeo -mas, depois que a ideia aparece mil vezes, o apelo diminui. Não há receita infalível. A porcentagem de gente clicando em anúncios se mantém baixa e é estável.
Apreço à privacidade
Em pesquisas recentes, 86% dos americanos se disseram contrariados com propaganda exibida a partir do histórico de cliques e interesses. Internautas não gostam de se sentir seguidos ou monitorados.
Mesmo os jovens adultos, de 18 a 24 anos, que podem expor toda a sua vida no Facebook, posar de biquíni e falar coisas impróprias, respondem de forma muito parecida aos mais adultos sobre o direito à privacidade. Muitos se sentem incomodados com o excesso de propaganda que os persegue, graças a algum clique que deram ou a alguma pesquisa que fizeram.
O sucesso da Amazon
A Amazon é um caso raro de uso de um mecanismo de recomendação baseado em compras anteriores -o que deixa claro que eles monitoram nossas compras e nossas pesquisas- que não parece incomodar os usuários. O sucesso deles, acho, depende de diversos outros fatores, dos preços baixíssimos, às vezes abaixo do custo, de não pagar certos impostos, da eficiência da entrega, é uma máquina de varejo eficiente.
Exemplo europeu
Na Europa, o debate cada vez mais forte é de que o mercado deveria respeitar o direito à privacidade dos indivíduos e ao controle de seu dados. Nos EUA, estamos longe disso.
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[Raul Juste Lores, da Folha de S.Paulo, em Nova York]