Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em busca das máquinas que ‘pensam’

Em alguns casos, ações publicitárias podem servir a propósitos sérios. Foi o que aconteceu recentemente quando a IBM submeteu um sistema de computação altamente avançado – que vinha sendo desenvolvido há quatro anos, com investimento de US$ 30 milhões – aos rigores do popular programa de perguntas televisivo americano Jeopardy. Na noite da disputa, tudo já indicava que a máquina teria uma vitória esmagadora sobre seus dois adversários humanos, que tiveram as melhores pontuações nos 27 anos de existência da série de perguntas de dificuldade mediana.

Isso pode soar um pouco como um anticlímax, se comparado à última vez em que a gigante americana da computação colocou suas máquinas contra o cérebro humano. Há 14 anos, o computador Deep Blue, especialmente construído pela IBM, derrotou o ex-campeão mundial de xadrez Garry Kasparov em uma série de seis jogos, por dois jogos a um, com três empates.

No entanto, a transição do universo da matemática pura para o mundo menos ordenado da linguagem e cultura popular representa, na verdade, um grande salto para a computação – um salto que pode ter um impacto surpreendentemente rápido tanto na vida cotidiana quanto na competitividade empresarial.

Geração de sistemas automatizados

A história da inteligência artificial é cheia de falsas alvoradas. Tentativas de construir máquinas capazes de simular o pensamento humano só parecem comprovar que a sutileza da mente humana não pode ser reduzida a um algoritmo. Porém, com avanços como o sistema que disputa o jogo de perguntas e respostas, um grande progresso está sendo feito em técnicas intimamente ligadas à inteligência das máquinas. Isso pode levar a um nível muito superior de tomada de decisões assistida por computador em áreas que vão de diagnósticos médicos a transações financeiras. Embora os custos ainda sejam proibitivos, esses progressos poderão um dia tornar possível a criação de assistentes pessoais digitais muito superiores ao Google em se tratando de responder a perguntas diretas.

Outra questão é se um dia as próprias máquinas, em sua busca por respostas, serão capazes de transcender as limitações de seus criadores – muito embora, como sempre é o caso no campo da inteligência artificial, previsões sobre a chegada das verdadeiras máquinas inteligentes devam ser vistas com certo ceticismo. Ainda assim, mesmo os cientistas da computação mais céticos acerca das implicações maiores do novo feito da IBM rumo à inteligência artificial plena afirmam que ele representa um grande avanço. ‘Há cinco anos, se você perguntasse a pessoas conservadoras do setor de inteligência artificial, elas diriam que isso iria demorar de 20 a 30 anos para acontecer’, afirma Rodney Brooks, professor de robótica do Massachusetts Institute of Technology (MIT).

Embora ainda esteja longe da inteligência artificial plena, a nova tecnologia pode dar origem a uma geração de sistemas automatizados capazes de fornecer soluções muito mais úteis e diretas para problemas cotidianos do que é possível na atualidade, diz Luis von Ahn, professor de ciência da computação da Carnegie Mellon University. ‘Desde que o problema esteja bem definido, estamos chegando ao ponto em que é possível solucioná-lo’, afirma ele – embora acrescente que isso depende de os algoritmos centrais do sistema que disputou o Jeopardy terem, de fato, a abrangência que a IBM alega que eles têm.

Refinar o raciocínio sempre que a resposta é errada

De acordo com analistas como Merv Adrian, do Gartner, companhia de pesquisa de mercado na área de tecnologia, a transição dos programas de perguntas na TV para uma nova classe de sistemas de computador que parecem imitar certos elementos do raciocínio humano pode ser um ‘pulinho’. A IBM já está discutindo com grandes companhias de saúde dos Estados Unidos como usar a tecnologia para produzir sistemas diagnósticos mais precisos e afirma que usos nos setores de serviços financeiros e varejo provavelmente virão em breve. Os aspectos básicos dos processos de pergunta e resposta com potencial para ajudar na tomada de decisões poderão ser colocados em prática dentro de um ano, diz Kerrie Holley, pesquisador da IBM.

Para compreender o potencial – bem como os limites, muito reais – de um sistema como esse, é importante entender como ele seleciona respostas em meio ao conjunto do conhecimento humano. Dois processos centrais estão por trás desse truque. Um deles é o reconhecimento natural da linguagem – a capacidade de ‘compreender’ uma sentença. Devido às complexidades do vocabulário e da sintaxe, isso é mais difícil do que parece. O fato de que a linguagem nem sempre segue regras claras representa um problema para as máquinas, que têm dificuldade em conviver com a ambiguidade.

O outro processo consiste em ‘casar’ a resposta mais provável a uma determinada pergunta – conhecido no jargão científico como deep QA (pergunta e resposta profunda). O sistema da IBM, batizado de Watson, nome do fundador da companhia, vasculha inúmeras respostas possíveis. Ao invés de simplesmente escolher o resultado com maior pontuação, ele atribui uma probabilidade de determinada resposta estar correta – uma técnica potencialmente útil em situações do mundo real, no qual as coisas raramente são ‘preto no branco’. Um elemento central desse processo é conhecido como machine learning (aprendizado de máquina), que permite ao sistema refinar seu raciocínio sempre que dá uma resposta errada. Embora versões rudimentares do aprendizado de máquina já venham sendo usadas no dia-a-dia em filtros de spam para a internet, por exemplo, sua aplicação a uma base muito mais ampla de informação geral representa um grande avanço, de acordo com analistas que estudaram o sistema.

Responder a uma questão em menos de três segundos

O projeto depende da disponibilidade de grandes conjuntos de dados digitais, usados tanto para fazer ajustes finos no sistema, ‘treinando-o’ por meio de vários exemplos, quanto para fornecer a matéria-prima da qual as respostas são tiradas. Isso coloca em evidência um progresso mais amplo na ciência da computação, afirma o professor Brooks, do MIT. O acesso online a gigantescos bancos de dados que compreendem várias disciplinas acelerou as pesquisas em diversas áreas. Ele destaca avanços em tradução, que se fizeram possíveis pela disponibilidade de grandes quantidades de documentos da Comissão Europeia que foram copiados para vários idiomas. Por fornecer exemplos correspondentes em diferentes línguas, eles se tornaram uma ‘cartilha’ para sistemas digitais de tradução. Some-se a essa capacidade um smartphone e um aplicativo de reconhecimento visual e é possível fotografar uma placa em língua estrangeira e encontrar uma tradução instantânea – o tipo de coisa, diz o professor Brooks, que teria soado como ficção científica há apenas cinco anos.

O Watson foi alimentado com milhões de livros de bibliotecas digitais e outros documentos, criando assim uma gigantesca base de análise da qual ele extrai resultados que podem ser inesperados. Isso é essencial para o potencial de todos os novos sistemas que usam bancos de dados disponíveis online. Por abranger muitas áreas distintas do conhecimento, eles podem descobrir elos inesperados que esclarecem um problema complexo ou fazer previsões que não seriam possíveis com a especialização em um único campo.

Quando erra uma resposta, o computador Watson ‘parte em busca de dados relacionados que retornariam um resultado diferente’, diz Adrian, do Gartner. ‘Ele é capaz de procurar coisas que têm valor prognóstico e aventar possibilidades que ninguém nunca sugeriu.’ A técnica é muito mais intensiva que a utilizada pelo Google. Enquanto a companhia de busca é capaz de realizar milhões de buscas simultâneas, o sistema da IBM empenha todo o seu banco de processadores em responder a uma única questão em menos de três segundos. ‘Ele pega a totalidade do conhecimento humano e o vasculha em altíssima velocidade’, diz Richard Doherty, analista da Envisioneering, outra companhia de pesquisa de mercado na área de tecnologia.

‘Impossível distinguir o lixo dos bons resultados’

A IBM promete que aplicações destinadas às áreas de negócios e políticas públicas se seguirão em breve. ‘A tecnologia básica e os algoritmos subjacentes são compartilháveis’, afirma Holley. Serão necessários especialistas para adaptar o sistema a tarefas específicas, mas ainda não se sabe quanto trabalho isso vai demandar. Tarefas que requerem a análise de grandes quantidades de informação e a avaliação extremamente rápida de probabilidades deverão vir antes. Os primeiros clientes, de acordo com Holley, provavelmente vão incluir instituições financeiras – sempre entre as primeiras a usar novas técnicas de análise de dados, uma vez que muito é exigido de sistemas de gerenciamento de riscos e suporte a transações em bolsa, que precisam processar grandes quantidades de informação em altíssima velocidade.

Aprovação de empréstimos, diagnóstico de doenças, venda cruzada de produtos a clientes no varejo e pesquisa de mídias sociais em busca de novas maneiras de compreender clientes são tarefas que podem ser transformadas com o auxílio de um computador inteligente, diz ele. Essas promessas lembram as esperanças geradas por uma geração anterior de ‘sistemas especialistas’, que foram projetados para encapsular os processos de pensamento de especialistas a fim de guiar as decisões de terceiros. Incapazes de se adaptar a dados imprevistos ou a circunstâncias variáveis, eles eram rígidos demais para ser úteis em larga escala. Desta vez, dizem os otimistas, os sistemas vão evoluir para além das limitações de seus programadores. ‘Serão [como] conselheiros de confiança’, diz Doherty.

No âmbito social, no entanto, as aplicações potenciais desses sistemas provavelmente levantarão questões mais difíceis. Armados com dados suficientes, eles poderão fornecer as melhores respostas para problemas mais amplos – a melhor forma de lidar com uma epidemia em massa, por exemplo. O uso de uma máquina na tomada de decisões como essa, que teriam impacto sobre milhões de vidas, levantaria questões éticas relativas à definição de uma política pública.

Aliada a esse problema estaria a dificuldade crescente de se analisar criticamente esse tipo de sistema ‘inteligente’, mesmo à medida que eles se tornam mais avançados em seu raciocínio e certos de suas próprias conclusões. ‘Logo será impossível distinguir o lixo dos bons resultados’, diz Luc Barthelet, diretor-executivo do Wolfram Alpha, outro serviço ambicioso de pergunta e resposta pela internet.

Pensamento rudimentar pode facilmente ser terceirizado

Tentativas de descrever as implicações no longo prazo de sistemas como o Watson logo resvalam para a linguagem da ficção científica. Holley, por exemplo, prevê o advento de assistentes diagnósticos como aquele usado pelo dr. McCoy em Jornada nas Estrelas. A inclusão de reconhecimento de voz – truque que, acreditava-se, seria difícil demais de aperfeiçoar para o sistema do Jeopardy – acentuaria a característica humana desses sistemas, levando-os mais um passo rumo à inteligência enigmática e sobrenatural de Hal, o computador do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de 1968. Avanços no aprendizado de máquina, que libertam os computadores dos limites de seus programadores, inevitavelmente remetem a todo um gênero de ficção científica antiutópica. ‘É neste ponto que começamos a nos lembrar da Skynet’, afirma Adrian, referindo-se ao sistema dos filmes da série O Exterminador do Futuro, que desenvolve uma autoconsciência e se volta contra seus criadores.

A história da inteligência artificial leva a crer, no entanto, que não adianta superestimar o potencial de um único avanço. Os computadores ainda dependem da força bruta para atingir seus resultados, fazendo uma quantidade imensa de cálculos para realizar as tarefas mais simples para a mente humana, como reconhecer um rosto. Os algoritmos do raciocínio humano ainda são um mistério, diz o professor Brooks. O aprendizado de máquina também não oferece ainda um meio de construir um computador capaz de transcender os limites de suas próprias origens. Sistemas como o Watson são incapazes de criatividade ou de fazer progresso real em sua própria compreensão, diz Arvind Krishna, da IBM.

Assim como o Google se tornou um complemento para a memória humana, no entanto, sistemas sofisticados de pergunta e resposta podem vir a complementar o pensamento humano um dia. E daí pode ser um ‘pulo’ para se delegar tarefas rotineiras a assistentes digitais, assim como a maior parte da matemática há muito foi deixada para as calculadoras. Por que seguir um processo de pensamento rudimentar que pode facilmente ser terceirizado?

Quando chegarmos a esse ponto, talvez as máquinas não tenham mais inteligência real do que têm hoje – mas seus criadores humanos terão expandido suas próprias funções intelectuais para um ponto ainda mais distante dos limites da natureza.

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Do Financial Times, em San Francisco (EUA)