Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Em defesa do anonimato na internet

Na semana passada, descobrimos que a autora do blog A Gay Girl in Damascus (“Uma lésbica em Damasco”) era, na verdade, um homem casado que mora na Escócia. No dia seguinte, outra blogueira gay também admitiu ser, na verdade, um aposentado de Ohio. Os dois disseram que escreviam como se fossem mulheres para, assim, serem levados mais a sério. A ilusão começou a se desfazer para a fictícia Amina Arraf, que dizia atualizar seu blog a partir de Damasco, quando alguém começou a circular na internet a notícia de que ela teria sido presa por forças do governo. Enquanto aqueles que a apoiavam procuravam por ela, algumas perguntas começaram a ser feitas: haveria alguém que já tivesse encontrado a blogueira na vida real? Não.

Uma trilha de pistas digitais conduzia não a Amina Arraf, mas a um certo Tom MacMaster, um americano de 40 anos que mora em Edimburgo. Depois que MacMaster admitiu ter se passado por Amina, Bill Graber confessou ter inventado a blogueira lésbica Paula Brooks, que seria supostamente a editora do site Lez Get Real. A revelação devastou o grande público LGBT que acompanhava a página. Esses homens estavam mentindo. Suas grandes ficções desperdiçaram o tempo do Departamento de Estado, magoaram os amigos na rede que acreditaram naquelas histórias e podem ter levado à exposição das identidades dos blogueiros anônimos da Síria. Agora, podem ainda fazer outra vítima: o anonimato na internet.

Um autor sírio que escreve sob o pseudônimo de Daniel Nasser disse que, agora, “os editores de todo o mundo (terão) de verificar se eu sou mesmo uma pessoa real ou apenas outro personagem. A relação de confiança entre a mídia estrangeira e esses ativistas, que precisam de todo o apoio que puderem receber para dar continuidade à sua corajosa luta, foi perdida”.

Capacidade de se expressar sem temer represálias

Se a revelação a respeito de Amina servir para prejudicar ainda mais o anonimato na rede, acabaremos perdendo boa parte daquilo que faz do debate livre e aberto na internet uma força tão poderosa. Os eventos dramáticos da primavera árabe e do tumulto que ainda acomete a região serviram para ilustrar a necessidade do anonimato, assim como o embuste de MacMaster destaca seu lado negativo.

Em Amina, os leitores e jornalistas do Ocidente pensaram ter encontrado uma voz capaz de explicar os complicados eventos que se desenrolam na Síria. A mentira de MacMaster só aumentou a confusão em relação àquilo que de fato ocorre no país – onde jornalistas estrangeiros mal podem entrar, um lugar onde tanto blogueiros quanto agentes do governo usaram a tecnologia e os pseudônimos para controlar e manipular as notícias durante a primavera árabe.

A falsidade na rede pode, de fato, ser perigosa. Judith Timson, colunista de Toronto que escreve nos jornais Globe & Mail, viu em MacMaster traços que a lembraram de um recente crime no Canadá, no qual um homem assumiu uma identidade falsa numa sala de bate-papo e encorajou uma jovem a tirar a própria vida – coisa que ela fez. “Sob a máscara do anonimato, pessoas doentes, perversas ou simplesmente travessas, que não conseguem avançar na vida, podem fazer de tudo na rede”, escreveu Judith. “O que pode ter consequências relativamente menores, como no caso do site A Gay Girl in Damascus, ou resultar no incitamento ao suicídio ou ao assassinato.”

Perfis falsos também têm sido usados por governos autocráticos como forma de disseminar sua propaganda. Na Síria, as autoridades têm espalhado nas redes sociais mensagens supostamente escritas por cidadãos comuns apoiando o presidente Bashar Assad. Apesar dos casos de uso equivocado do anonimato na rede, a capacidade de se expressar sob uma identidade diferente – o que possibilita, em certos casos, falar a um público mais amplo – permite que incontáveis pessoas encontrem liberdade para experimentar sem temer represálias.

Perigos do anonimato não superam benefícios

Digamos, por um instante, que o único crime de MacMaster e Graber tivesse sido o de fingirem ser mulheres escrevendo blogs fictícios. Os pseudônimos serviram como um poderoso disfarce sob o qual as mulheres fingiram ser homens durante gerações. Os autores – e todos os demais – devem poder explorar na rede identidades e crenças sem que isso seja para sempre associado ao seu histórico no Google. “Não acredito que a sociedade compreenda o que ocorre quando tudo se torna disponível, conhecível e registrável por todo mundo o tempo todo”, disse Eric Schmidt, ex-diretor executivo do Google. Ele sugeriu que a única forma de as gerações futuras escaparem de seu passado digital será alterar o seu nome quando chegarem à idade adulta. Nesse futuro, todas as indiscrições da juventude ou todas as opiniões emitidas anteriormente seriam para sempre registradas.

Os comentários anônimos, que podem ser um miasma de delírios profanos, imprecisos e controvertidos, são, muitas vezes, usados como o principal exemplo do motivo pelo qual precisamos de mais autenticidade na rede. Além das preocupações levantadas pelos embustes desmascarados na última semana, a própria rede já representa um perigo para o anonimato. Embora a internet ofereça muitas maneiras de ocultar a identidade, ela também torna mais fácil a tarefa de rastrear as pessoas.

Em outros casos, as provas digitais levaram governos repressivos a fechar o cerco contra os escritores. Hossein Derakhshan, fundador do movimento dos blogueiros no Irã, escreveu muito sobre seu país. No julgamento dele, realizado no ano passado, esses textos postados em seu blog foram usados para condená-lo por criar propaganda destinada a atacar o regime islâmico. Ele foi condenado a 20 anos.

O anonimato permitiu que os blogueiros do Oriente Médio contassem ao restante do mundo aquilo que está ocorrendo em seus países durante a primavera árabe. O anonimato confere a todos na rede uma liberdade de expressão, uma criatividade e uma amplitude de debate que poderia não existir se houvesse a necessidade de apresentar um nome real. Os perigos do anonimato não superam seus benefícios. Temos de dar espaço para as verdadeiras lésbicas de Damasco, sejam elas quem forem.

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[Melissa Bell e Elizabeth Flock são jornalistas do Washington Post]