Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Em tempo de tecnologias da informação

Em fins de 2006, publiquei, para uma revista acadêmica, alongado ensaio de 60 páginas (‘O ler, o ver e o ser na sociedade creôntica e imagofrênica‘), a respeito do tema a que aqui retorno. A referência à escrita anterior serve para acentuar a gama de indagações e reflexões que os novos tempos, com suas aceleradas transformações, impõem, em face dos diferentes comportamentos adquiridos por exigência da vida cotidiana. É tudo ainda muito recente e, portanto, as análises sobre tais aspectos da contemporaneidade também estarão sujeitas a incompletudes e a continuadas investidas crítico-reflexivas. Daí que, a leitores interessados nesse campo, ofereço mais alguns parágrafos.

O primeiro desafio que se apresenta consiste em escapar da lógica fechada na qual ardorosos defensores da tecnologia se confrontam com raivosos detratores da mesma tecnologia. As duas posições são, na verdade, ingênuas, ao revitalizarem certo maniqueísmo em torno de algo que sabidamente não é apenas a expressão do bem, como tampouco o é revelador do mal. Nesse sentido, é pouco rentável a oposição entre os seguidores de Pierre Lévy e os partidários do recém-falecido teórico francês Jean Baudrillard, embora a grandeza deste, sequer minimamente, se possa aproximar da fragilidade conceitual daquele.

Já em fins da década de 80, no século passado, Adam Schaff antecipava interessantes observações no livro A sociedade informática (Brasiliense / Unesp, 1995), cujo epílogo registra instigante pergunta: ‘Qual utopia se realizará?’. Na obra citada, o adjetivo ‘informática’, presente no título, sugere tanto ‘informação’ quanto ‘informatização’, ou seja, forma-se a parceria entre conteúdos circulantes e suportes de veiculação. Tentando fundir os dois, Pierre Lévy, anos após, proporia o conceito de ‘sociedade hipertextual’, na qual a cultura do texto migra para a codificação de multitextos. É inegável que já vivemos a era do hipertexto. O que, entretanto, não se avalia com o devido distanciamento é a mudança de procedimentos a afetar o perfil do novo leitor. O hipertexto sempre existiu. É a base de um processo de leitura calcado na aquisição de conhecimento. O leitor antigo, ao promover a travessia da leitura fazia associações a outros autores, conceituações diferentes, enfim, conexões que se situam na expansão da inteligência. Na era do hipertexto virtual, toda a codificação já vem indexada. Num CD-Rom, ‘x’ remete a ‘y’ que, por sua vez, abre para ‘z’, e assim sucessivamente. Qual é então a diferença?

Atalhos para reflexão

Na versão antiga, todo o processo derivava dos atos cognitivos e perceptivos do leitor. Este era agente absoluto da experiência e responsável por sua rentabilidade intelectiva. No novo formato, tudo está programado por ‘alguém’, tornando o receptor mero seguidor das marcações de outrem. Será, pois, o formato do hipertexto virtual efetivo colaborador de expansão da inteligência e da informação, ou um perigoso indutor à passividade e à submissão? Ainda não dispomos de claros mapeamentos, há tão-somente suspeitosos indícios. Algo, porém, já é detectável: há uma situação-problema cuja configuração aponta para a seguinte equação: > I + D = < R + D (maior informação + difusão = menor retenção + dispersão).

A relação entre tecnologia e informação, tanto no âmbito da linguagem impressa quanto na esfera do código audiovisual, implica a compreensão do que envolve o esquema triádico entre real, atual e virtual. Sinceramente, os conceitos que Pierre Lévy destina a esses três campos, seja no livro As tecnologias da inteligência (Ed. 34, 1993), seja em O que é o virtual? (Ed. 34, 1996), ou mesmo o que desenvolve em Cibercultura (Ed. 34, 1999) e, adiante, em A conexão planetária: o mercado, o ciberespaço, a consciência (Ed. 34, 2001), não tocam, nem ao longe, em pontos merecedores de reflexão mais apurada. Vamos, pois, procurar outros atalhos para a reflexão.

Falsificação da existência

De pronto, fixe-se a idéia de que nenhuma ferramenta tecnológica gerou o ‘virtual’. A mente humana, na abstração do pensamento e na expansão imaginativa, concebeu o ‘virtual’. Sob esse aspecto, há de se reconhecer que a civilização foi lenta demais: quase seis mil anos para a invenção de uma máquina que pudesse realizar o que a mente, por si, já fazia desde sempre. Isto quer dizer que o ‘real’ é uma extensão natural do que antes tem de ser ‘virtual’, a exemplo da imagem mental que precede qualquer imagem física, registrada pelas artes plásticas, ou mesmo pelas formas da fotografia e do cinema. Não será por diferente razão que a palavra ‘virtual’ agrega semanticamente ‘virtude’, ‘virilidade’ e ‘vírus’. Nessas palavras está o sentido da ‘força’ tanto do que ela erige quanto do que ela tem a propriedade de abater. O positivo e o negativo (construção e destruição) habitam o virtual. A inteligência humana é, por excelência, uma dimensão virtual.

No tocante ao ‘real’, igualmente a origem da palavra contém o sentido profundo. ‘Real’ é tudo que deriva do ‘rei’, i.e., o poder. Se o ‘real’ é uma construção do poder, o ‘real’ pertence sempre ao ‘outro’. Como o ‘real’ se situa no horizonte do ‘outro’, é natural que o ‘eu’ sempre manifeste, em relação ao ‘real’, sensação de desconforto, incompletude, insatisfação. O real é opressivo, razão pela qual o ‘eu’ se liberta mediante a projeção do ‘ideal’ (idéia), origem de todas as utopias. A utopia, por conseguinte, sinaliza o escape da subjetividade do ‘eu’ contra as determinações do real (poder). Nenhum poder formula utopias. A ‘utopia’ do poder reside na própria manutenção do poder.

Em relação ao ‘atual’, cabe registrar que, na origem do termo, está o ‘ato’; portanto, desvinculada do sentido temporal, ‘atual’ não quer dizer o vigor do agora, mas com a potência do permanente. As grandes criações na arte, na filosofia e na ciência são atuais, independentemente de quando foram concebidas. Há nelas tamanha intensidade virtual que as deixa perenemente atuais. Como se pode deduzir, rigorosamente o que existe é o ‘virtual’, enquanto o ‘real’ e o ‘atual’ não passam de existências derivativas. Aí, pois, reside o dado: a tecnologia não virtualiza nada. Ela apenas torna disponível a potência e a imaginação que existirem na dimensão subjetiva do ‘eu’. O perigo está no fato de o ‘eu’, perdendo seu próprio horizonte, absorver o ‘real’ (que é do ‘outro’) e deixar-se arrastar pelo inconstante falso ‘atual’ que, nesse sentido, não passa da mera e vazia ‘novidade’. A tecnologia é prodigiosa em seu alcance e aceleração de procedimentos. Todavia, para ela, é indispensável uma inteligência humana cada vez mais faminta de conhecimento e de querências imaginativas. Em caso contrário, ela servirá para progressivamente colaborar para a falsificação da existência, em troca de um tímido caminhar pela sucessão de um cotidiano sem brilho, sem inventividade, sem profundidade, enfim, um deslizar pelo real.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA – Rio de Janeiro)