Na matéria ‘Ciberneticamente regulado‘ da edição de abril do Canal da Imprensa, foram abordados os principais pontos que norteiam discussões sobre liberdade e democracia no mundo virtual. A respeito do marco civil, em elaboração atualmente e, por isso mesmo, tema de mais fôlego no momento, há uma série de argumentos prós e contras, de pessoas especializadas dos diversos setores da sociedade ou mesmo de cidadãos comuns.
O marco civil é um projeto de lei criado na intenção de regular os direitos e deveres de cada internauta do país. Desde que a ideia foi acatada pelas autoridades e lançada oficialmente, a esperança de avanço da internet brasileira tem alimentado esforços de várias partes da sociedade. O Ministério da Justiça, juntamente com a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito-Rio), em 29 de outubro do ano passado, criou primeiramente uma proposta inicial de tópicos para guiar a discussão.
Brechas e contradições
O debate sobre esses tópicos, na primeira fase do projeto, durou 45 dias e ocorreu ao melhor estilo da internet: por meio de uma construção colaborativa online [tópicos sugeridos para a discussão da primeira fase do marco civil ]. Foram postados pouco mais de 800 recados, que foram devolvidos para análise do Ministério da Justiça e transformados em um anteprojeto. O resultado está novamente no portal oficial para ser comentado e fica lá até o dia 23 de maio. Nas últimas semanas, audiências públicas têm sido realizadas com especialistas para discussão dos pontos. A ideia é que o projeto seja encaminhado para o Congresso no mês de junho.
Para o jornalista Guilherme Felitti, colunista da revista CartaCapital e repórter do portal de tecnologia IDG Now, o processo de construção do marco regulatório é importante pelo fato de ser democrático e, ainda, cobrir as falhas da legislação atual. ‘Falta clareza à legislação brasileira vigente no tratamento de questões envolvendo a internet. Por isso mesmo se pensou no marco civil. Antes de achar culpados e condená-los, é bom deixar claro quais são as responsabilidades de cada um’, salienta.
‘A grande jogada do marco regulatório é garantir os direitos dos bem intencionados usuários da rede, para que eles não paguem pelos que cometem as infrações’, disse o presidente do Comitê Gestor de Internet no Brasil, Demi Gestschko, em entrevista à TV Cultura. Apesar da intenção, o anteprojeto está um pouco distante da perfeição. Ainda existem certas brechas e até contradições nos artigos que montam o conjunto de direitos e deveres. Os pontos mais controversos dizem respeito à remoção de conteúdo por terceiros e à identificação dos internautas por meio de seus registros de conexão.
Retirar informação é ‘inconstitucional’
Segundo o 20° artigo do anteprojeto, se uma pessoa se sentir ofendida por algum conteúdo postado na internet por outro usuário, em um comentário, por exemplo, deverá informar ao site e este deverá retirá-lo rapidamente. O dono do site também deverá informar o ofensor – no nosso exemplo, o autor do comentário – sobre a remoção. Dessa forma, o site não será responsabilizado pelo conteúdo ofensivo. No entanto, o autor do comentário poderá acatar a remoção ou contranotificar, exigindo que o conteúdo seja restabelecido. Se o usuário ofensor não conseguir entrar em contato com o site, o conteúdo permanece removido. O sistema, já usado em alguns países, é chamado de notice and take down (notificação e retirada) [‘Consulta expõe controvérsias do marco civil da internet‘].
A principal crítica a este ponto é a de que isso possa gerar uma espécie de censura instantânea sobre os conteúdos postados. Como os sites vão avaliar se um conteúdo é ou não ofensivo? Para o advogado Marcel Leonardi, pós-doutor pela Escola de Direito da Universidade da Califórnia, Berkeley, esse tipo de decisão é de responsabilidade judicial. ‘Não é possível afastar a necessidade de análise judicial e de ordem específica para a retirada de conteúdo, já que decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do material – em todas as suas possíveis formas – é algo necessariamente subjetivo, além de ser prerrogativa exclusiva do Judiciário’, explica.
Esse problema poderia atingir diretamente os sites jornalísticos, cerceando a liberdade de expressão. Dentre as diversas pessoas a se manifestaram por esse motivo, a presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Judith Brito, crê que retirar uma informação toda vez que alguém se sentir prejudicado, ‘é inconstitucional’ [‘Sites jornalísticos querem ficar de fora do projeto do governo que regulamenta setor‘].
Anonimato e privacidade
As críticas foram consideradas pelos coordenadores do projeto, o que fez com que o ponto fosse melhor esclarecido no portal. Segundo a explicação, ‘a minuta não pretende substituir a via judicial, mas agregar ao ordenamento uma possibilidade prévia, que possa satisfazer as pretensões com mais velocidade’. Em outras palavras, segundo o portal oficial, a proposta de resolução destes casos fora do âmbito judicial é algo voluntário, e não exclui a possibilidade de defender os direitos na Justiça [‘Remoção de conteúdo‘].
O segundo ponto diz respeito à identificação de usuários na web. Os provedores de conexão com a internet teriam que guardar informações dos usuários (data, duração e endereço IP vinculado ao terminal onde todos os processos foram realizados) por até seis meses. A intenção é possibilitar uma melhor investigação, identificando com mais rapidez e eficiência quem infringe os princípios e direitos da web [‘Marco civil da internet: muitos avanços e uma ameaça‘].
Contudo, a lei não permitiria aos provedores fiscalizar os dados que trafegam em serviços internos da rede. Cadastros em portais e sites de compras, por exemplo, só poderiam ser revelados por meio autorização judicial. O armazenamento de registros de acesso a e-mails, blogs e perfis em redes sociais também só poderia ser feito mediante consentimento do usuário. Em relação a outras tentativas de lei regulatórias, como a da Lei Azeredo, o marco civil tenta garantir o anonimato, a privacidade e a liberdade de expressão, pensamento e de compartilhamento.
Grandes veículos não têm dado atenção
Mas se o ponto procura facilitar a investigação de crimes cibernéticos, Leonardi enxerga uma contradição no projeto ao exigir informações de registros de conexão à rede, mas não os registros de acesso aos sites, ou seja, daquilo que se faz dentro dela. ‘Sem os registros de acesso aos serviços, torna-se duvidosa a utilidade dos registros de conexão, pois provavelmente não haverá um ponto inicial de partida para as investigações’. Contudo, o advogado vê como um ‘mal necessário’ o armazenamento dessas informações para estreitar as investigações e obter melhores resultados.
‘As ideias de anonimato, de privacidade, de liberdade de expressão, são exatamente as ideias que a gente quer proteger. Mas é importante que esse marco não comece pela porta da cadeia. Eu não preciso criminalizar condutas para que eu regulamente algo que é fundamental para nós em todos os aspectos’, disse o secretário do Ministério da Justiça, Felipe de Paula, também à TV Cultura.
Se o projeto entrar em vigor, ele vale para toda a web brasileira. No entanto, os grandes veículos de comunicação não têm dado tanta atenção ao assunto. Somente veículos especializados em tecnologia e internet têm publicado notícias de forma mais densa. Também é possível encontrar textos isolados em blogs e sites onde pessoas especializadas argumentam sobre o tal marco e estimulam a discussão no site oficial do projeto.
******
Estudante de Jornalismo do Unasp, Engenheiro Coelho, SP