Pensavam que seria moda passageira, como o bambolê, o frisbee, a calça boca de sino e o surfe de trem, mas até onde a lente alcança o selfie parece que veio para ficar. Respire fundo e vá em frente.
Dia desses uma atriz de telenovela, agastada com o assédio permanente de fãs, de celular em punho e ávidos por aquilo, desabafou: “Não aguento mais essa mania”. Príncipe Harry, herdeiro da Coroa Britânica, foi mais longe: ao chegar à Austrália, no fim da semana passada, pediu que só lhe tirassem “fotos normais” e tornou pública sua ojeriza ao selfie; justo na terra em que a palavra foi usada pela primeira vez, num fórum online, já lá se vão 13 anos.
Os australianos se amarram em diminutivos terminados em “ie” e preferem dizer “barbie” em vez de barbecue (churrasco) e “firie” em vez de firefighter (bombeiro). E assim foi que self-portrait (autorretrato) virou selfie uma década antes de se transformar numa obsessão globalizada e onipresente, num brinquedinho viciante sem fronteiras, cuja história está intrinsecamente ligada à evolução do telefone e da câmera fotográfica, à popularização da telefonia móvel e da internet e à vocação do ser humano para fazer papel de bobo.
Em 2013, a revista Time elegeu selfie a “palavra do ano”. No ano seguinte, foi a vez do Oxford Dictionary. Em outras plagas a praga consagrou-se como o maior fenômeno cultural deste início de milênio. O jornalista londrino Jonathan Jones, avesso como a maioria dos ingleses ao contato físico com estranhos, compulsório no selfie, revelou já ter sonhado com uma edição de fim de ano da revista Time, com a seguinte chamada de capa: “R.I.P., selfie”. No meu sonho só muda a revista.
Quase ao mesmo tempo em que o caçula de Lady Di desqualificava o selfie na Austrália, outro súdito de sua avó, o consagrado historiador Simon Schama, o reduzia à condição de idiotice instantânea (“quick dumbness”), em entrevista ao Guardian. Não foi uma espinafração gratuita. Schama prepara uma exposição de retratos, em fotos e quadros, para a National Portrait Gallery, em Londres, e faz questão de demarcar com rigor os limites entre o self-portrait (“a mais intensa e neurótica das artes”) e o selfie (“jubilosa e superficial perversão da arte de fazer retrato”). Rembrandt, Van Gogh e Picasso fizeram autorretratos, selfies até crianças podem cometer. “Selfie é ruído branco, retrato é música”, fulminou o historiador.
O selfie é um registro egocêntrico, desprovido de espontaneidade e visualmente limitado desde o enquadramento, que só não constrange quem faz o clique. Com o celular empinado por um pau de selfie, constrange muito mais.
Surto de autorrepresentação
Quando os celulares ainda não eram inteligentes, as pessoas se distraíam e se deleitavam trocando impressões e mensagens entre si; agora, munidas de smartphones, saturam seus semelhantes com imagens de si próprias, em geral com um sorriso alvar estampado no rosto e um dos braços obrigatoriamente torto. A paulatina proibição do “pau de selfie” em lugares públicos como templos, museus e restaurantes (o Kentucky Derby, a maior competição do turfe americano, foi a última instituição a aderir ao boicote na semana passada) só em parte atenuará o nosso desconforto. Pois uma câmera sem o stick é como um cigarro cujo filtro o fumante jogou fora antes de acendê-lo na sua presença.
E se o selfie tiver algum mérito? Para algumas mulheres, tem. Seria especialmente benéfico para as moças, um estimulante à sua autoestima, argumentou Rachel Simmons, na revista eletrônica Slate, ao fechar com uma tese da jornalista Jenna Wortham, que na BBC News Magazine defendera o selfie como uma espécie de psicotônico digital.
No dia seguinte, na revista eletrônica Jezebel, a feminista Erin Gloria Ryan aderiu à polêmica. Entrou rachando: “Corta essa. Selfies não fortalecem mulher alguma, são um estímulo high tech à preservação do primado da atração física”. A pornodiva Kim Kardashian, rainha do exibicionismo glúteo (sem desdouro do pubiano), talvez seja a prova mais notória do mal que o selfie pode causar à psique feminina.
Na ala masculina, o mais destacado defensor do selfie que conheço é o crítico de arte Jerry Saltz, da revista New York. Em janeiro do ano passado, escrevendo na eletrônica Vulture, elevou-o à categoria de “novo gênero visual”, um tipo de autorretrato formalmente distinto de todos que o antecederam, especialmente porque praticado não por artistas mas por amadores, que transformaram fotos em diálogo, em conversação digital, com repercussões sobre o comportamento individual, a interação social, a linguagem corporal, a noção de privacidade e o senso de ridículo.
Schama não discordaria dessas observações, somente das conclusões complacentes de Saltz. Que teorias Roland Barthes (morto antes do telefone sem fio) e Susan Sontag (morta antes do celular inteligente) nos teriam a oferecer sobre o atual frenesi fotográfico, a que nem o papa (e muito menos Obama) conseguiu resistir?
Por ora, contentemo-nos com o escritor e ensaísta argentino Ariel Dorfman. Sua leitura do que quer que seja é sempre política. Sim, foi ele quem nos anos 1970 enquadrou Pato Donald como um agente cultural e econômico do capitalismo americano. A seu ver, o atual surto de autorrepresentação digital não só tem a ver com o descontrole da vaidade e do narcisismo proporcionado por uma economia de mercado igualmente descontrolada como facilita o trabalho das agências de espionagem governamentais e dos Big Brothers corporativos. Com tanta privacidade espontaneamente exposta, nem precisam arrombar a porta.
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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo