O acordo firmado entre o Facebook e a FTC (Comissão Federal de Comércio) em 29 de novembro último está sendo ingenuamente aceito como a solução final para as más práticas da companhia quanto ao manejo de dados e privacidade de seus usuários. Parte da mídia exaltou o acontecimento, sem aprofundar devidamente o assunto. A coisa não é tão simples quanto parece. A mega rede social fez uma falsa mea culpa, cooptou uma agência do governo americano e saiu livre e sem punição por violar a privacidade de seus usuários.
O Facebook está prestes a fazer sua primeira oferta pública de ações. O momento é o melhor possível para apaziguar as mentes inquietas e suspeitas dos banqueiros e grupos financeiros interessados em participar dos imensos lucros da empresa de Zuckerberg. É uma boa hora também para tranquilizar as agências governamentais, abarrotadas de reclamações sobre as más práticas comerciais do Facebook. E, obviamente, a mega rede social não pode esperar para aumentar exponencialmente seu valor de mercado.
A mídia foi pega de surpresa pelo acordo com o FTC. O início da cobertura foi decepcionante, com parte dos informativos a entoar loas ao acordo: “Mudanças na privacidade devem ser consentidas”, dizia a manchete do Techcrunch (“Privacy Changes Must Be Opt In”). Mas a maior decepção veio da excelente Ars Technica (30/11): “Facebook concorda com FTC sobre fiscalizar privacidade por 20 anos”. A revista não fez nenhuma crítica ou tentativa de entender mais a fundo o que estava acontecendo. Apenas uma sinopse explicando como o Facebook “permitiu” que o governo faça auditorias de dois em dois anos, por duas décadas. Isto não pode ser levado a sério. Uma firma que pretende levantar mais de 10 bilhões de dólares num lançamento de ações não estaria preocupada com auditorias combinadas e multas de 16 mil dólares. É muito pouco, para seus horizontes majestosos…
Facebook tem dois ex-membros da FTC
O Facebook prometeu também parar com seu jogo sujo: manipular dados de usuários, mentir sobre as condições de segurança, entregar dados que deveriam ter sido deletados, vender dados privados… Coisinhas inocentes, pelas quais não será punido, mas auditado a cada dois anos pela FTC. A última auditoria está prevista para 2032. Mas por que os 20 anos de regulação? Eles acreditam que ainda vão estar na web por mais 20 anos? O governo americano parece acreditar que sim.
Quem poderia desejar melhor garantia para seu negócio? Foi mais um golpe de mestre de Zuckerberg: converteu a ação reguladora do governo em garantia de segurança com prazo de 20 anos para seu negócio. Porque eles, lá em Palo Alto, certamente acreditam que estarão aqui em 2032 e que ninguém será capaz de criar nada melhor para ocupar o seu lugar. Zuckerberg transformou o governo em avalista da longevidade do Facebook.
Mas nem todos são ingênuos na web, na mídia ou na política. Pouco a pouco, o logro que está contido neste acordo foi sendo exposto. O Gawker afirmou com todas as letras que “o acordo é um deboche da ideia de manter as companhias responsáveis por aquilo que fazem”, anotou Ryan Tate em 29 de novembro. Relatou também que o Face tem dois ex-membros da FTC nos seus quadros: a ex-comissária Mozelle Thompson (consultora-chefe de privacidade no Facebook) e o ex-membro do Conselho da FTC Timothy Muris. “A comissão poderia fazer o Facebook retornar às condições de segurança de 2009”, conforme recomendou a Epic, uma organização para defesa da privacidade digital. “Mas escolheu não fazê-lo”, acusou Tate.
Mentecaptos obtusos
O acordo foi uma vergonha. Um jogo com cartas marcadas. O Facebook não foi punido. Apenas concordou em parar de praticar violação de privacidade e manipular indevidamente dados de usuários. Zuckerberg veio a público assumir que sua companhia vem errando há anos. A FTC e o Facebook trocaram figurinhas, vergonhosamente. O conselho elogiou a firma de Zuckerberg, que devolveu os cumprimentos e passou a agir como cordeirinho.
A revista Forbes (01/12) denunciou a falta de transparência do acordo. Citou o caso de Henry Blodget, editor-chefe do Business Insider, que avisou sobre o “perigo de adicionar uma camada social às notícias” numa entrevista coletiva. Ele não gosta da ideia de todos ficarem sabendo que artigos ele lê. Blodget citou o exemplo do Huffington Post, que em 2009 introduziu uma espécie de mídia social de notícias, amparada na firma de Zuckerberg. Desde então, tudo o que ele lê no jornal de Arianna Huffington é compartilhado com seus amigos no Facebook. E o editor não gosta da ideia da “leitura social”, uma invenção do Facebook que viola princípios fundamentais do ato da leitura: o recolhimento e a introversão. Os dois são necessários para uma boa compreensão de um texto. A ideia de “leitura social” não faz sentido. A não ser espionar e divulgar o que alguém lê.
Susan Sandberg, executiva-chefe operacional do Facebook (que participou da entrevista), respondeu trazendo o exemplo de mais um jornal que aderiu a plataforma de “leitura social” da mega rede: o Washington Post. De forma extremamente pedante, explicou que as condições de privacidade de um aplicativo como o “leitor social” no Washington Post são perfeitamente claras: quando o usuário faz o login e a autenticação, ele recebe o seguinte aviso: “Tudo o que você ler será compartilhado com seus amigos. Você quer fazer isto?”, disse. E continuou: “Certamente, há vezes em que os usuários o fazem (compartilham), mas não compreendem.” “Nós temos 800 milhões de usuários e nem todos entendem. Mas estamos trabalhando duro para garantir que as pessoas compreendam que estão compartilhando”, acrescentou numa demonstração de desdém e subestimação dos usuários. Em outras palavras, chamou a todos de mentecaptos obtusos que não entendem como as coisas funcionam no Facebook. Sandberg não respondeu às inquietações do editor do Business Insider. Em vez disso, passou por cima delas para reafirmar a razãoperfeita da agenda do Facebook.
Apostando no de sempre
Outra coisa ficou clara em sua fala: ela quer garantir que todos estão a compartilhar tudo, queiram ou não. Afinal, estamos todos sendo injustos… O Facebook está trabalhando duro para que todos “compreendam” que estão compartilhando tudo. Mesmo quando não querem, como no caso do editor do Business Insider, que não quer publicidade sobre o que lê. Foi por abusos como este que o Facebook acabou com a fama de “máquina de espionagem”, como disse Assange. Nem tudo deve ser compartilhado em rede social. Ou em sociedade. Como já dizia o ranzinza e genial Nélson Rodrigues, “se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo, ninguém se dava com ninguém”. Nélson, que se definia como um “reacionário-libertário”, acertou em cheio…
Outro detalhe: Jeff Bercovivi, autor do artigo da Forbes, foi informado pela porta-voz do Washington Post que o mecanismo de compartilhamento da “leitura social” não pode ser desativado. Quando alguém faz o login no leitor de notícias e escolhe não compartilhar, nada acontece. O compartilhamento é mandatório e não pode ser desativado quando o usuário entra no leitor. Sandberg mentiu. A única forma de não compartilhar o que você lê é fazer a escolha artigo por artigo porque a opção anunciada na autenticação não funciona. Ou, segundo Sandberg, nós é que somos “pouco inteligentes”, e não sabemos acionar as configurações de privacidade propriamente…
Para Bercovici (que acredita que o compartilhamento passivo e mandatório do Facebook não é um pesadelo para a privacidade), “é óbvio que o Facebook vai continuar apostando no de sempre: tornar mais fácil compartilhar e ainda mais difícil e confuso não compartilhar, induzindo as pessoas a oferecerem mais informações do que elas realmente gostariam”.
Frente única contra os abusos
O Facebook escapou da punição, enganou uma agência governamental americana, mas seu “golpe de mestre” foi desmascarado, no final. Isto não se traduziu em nenhuma multa ou punição. O Facebook errou e não foi punido. A cena está bem preparada para o lançamento público das ações. Eles vão embolsar mais alguns bilhões de dólares, com certeza. Vão enganar um mercado ávido de lucros, cego pela ganância e fragilizado por uma crise sem precedentes.
A astúcia do Facebook só enfrenta agora um forte oponente: a União Europeia. Que pretende unificar toda a legislação de proteção de dados no próximo ano, informou o TechNewsWorld (28/11). E não quer abusos com os dados dos usuários europeus: a Europa estará unida em frente única contra os abusos a privacidade de seus cidadãos a partir de janeiro. Apesar de negar estar visando o Facebook, o “arrocho” que este vem levando das autoridades de proteção de dados europeias, junto com o surgimento de movimentos de base, como o Europa versus Facebook, não deixam dúvidas que a empresa não terá a tolerância que teve nos Estados Unidos.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]